sábado, 29 de dezembro de 2012

Da arte de amar

Talvez seja necessário, melhor, é um dever agora tirar todos os pelos do corpo, principalmente os do peito, para que um aspecto de um macaco?

Também é importante ter o corpo banhado com os melhores perfumes. 

Sobrancelha feita é sinal de cuidado, limpeza, vaidade.

Sapatos limpos, engraxados, brilhando.

Nada se compara com a chave de um carro ou de uma moto (que maravilha!).

De que adianta fazer versos bem rimados, rimas ricas, paralelismos sintáticos, se não pode dar segurança e conforto ao seu objeto de amor?

(É necessário fazer uma releitura ao contrário da Ars de Ovídio)

Nada de lugares comuns na sua retórica da pegação.

Um dos melhores lugares é, vejamos um exemplo, o Barra Music, ou por aqui no subúrbio o Sete Linhas.

Chã, chão, chão! Desce e sobe!

E você acompanha o ritmo encantador.

Palavras úteis para o momento? Nenhuma!

Bastam 3 latinhas de cerveja, a música alta do funk da hora e lá vai sua mão tocar aquele maravilhoso corpo seminu que se mostra rebolando até o chão, num sobe e desce frenético. Basta acompanhar a dança e lançar mão do maravilhoso imperativo vem!

Vendo a chave do carro, o sorriso encantador, já foi!


Gabriel Sant'Ana

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Sinopse para o livro "Meu táxi, um divã" de Paulo Cesar


Antes de abrir o livro, o leitor se indaga sobre o motivo do título. Será que o autor tratará de temas ligados à psicologia, psiquiatria, casos clínicos? Terá o autor trazido alguma ideia, algum conceito, explicação através de uma metáfora do exercício de seu trabalho? Nada disso.
O leitor irá embarcar, junto com as personagens destas crônicas, no táxi do Paulo Cesar, viverá cada situação narrada por cada uma delas, talvez até se encontre em algumas das várias peripécias – quem nunca teve um acesso de raiva? Quem nunca quis se dar bem em algum momento da vida? Uma infinidade de acontecimentos, que nos são tão comuns...
Não só entraremos e viveremos cada narrativa, mas seremos levados ao destino tão almejado por cada personagem – não digo sua casa ou trabalho, mas uma possível solução para seus problemas, aflições. Se muitos costumam ir a psicólogos ou conversar com algum amigo, seja em casa ou no bar, para desabafarem; neste livro encontramos um lugar também propício a uma boa conversa, um lugar em que muitos expõem ao taxista o que sentem, o que lhes aflige; muitos mostram o que são.
Uma mulher, esbaforida, corre em direção ao táxi. Rápido, que está quase na hora de o marido chegar. Ambos trabalham no mesmo lugar. Ela ficou altas horas no forró da Feira de São Cristóvão. Que situação quando vê o marido na porta do prédio!
Diálogos rápidos e vivos, situações corriqueiras, engraçadas, e tristes também, argumentação arguta do taxista, pessoas que, por minutos breves no táxi ou no engarrafamento, refletem sobre a provocação do Paulo...
Enfim chego ao meu destino, não posso apresentar todo o livro nem segurar o trânsito da leitura...
Um proveitoso passeio!

Gabriel Sant’Ana

sábado, 22 de dezembro de 2012

(Outra vez bolo de nozes)


insistentemente bate com o martelinho a noz para fazer o esperado bolo de nozes deste natal com nosso punho fortemente mãos seguras firmemente estraçalhando em miúdos pedaços as nozes repete as batidas em agressividade crescente constantemente daqui algumas horas virão nossa sogra nossos sobrinhos com seus sorrisinhos felizes de uma felicidade oca e transparente seus presentes empacotados tão belos quebrando minha expectativa porque não irei ganhar aquela roupa que vi na loja quando estava em madureira hoje mais cedo porque não fica bem para tac tac rude esfrangalhar nossos dedos mais vermelhos palmas das mãos avermelhando no martelo alguns pedaços vão para longe no chão do lado de fora da casa tô com fome mãe vem logo o que tem pro almoço ô garoto se vira anda logo pega um biscoito aí dentro do armário parece estar se rachando mais forte com força viril animal estranhamente humana húmus em terra em noz misturando carne pele sangue arenitos nozes para o bolo tradicional da noite natalina no ambiente familiar agradável quero mesmo triturar quero muito mesmo porque mas naquela loja a roupa não estava na promoção vi a mesma roupa em outra loja mais barato que absurdo já veio a fatura do mês merda de brinquedinhos que tive que comprar pra essas crianças que não fazem nada o ano todo aumenta o suor seu rosto pingando indo para a boca entreaberta não sentimos sede apesar do sol das onze horas da manhã de dezembro plena sexta quando deveria estar à beira da praia tomando minha cervejinha me jogando no mar pedindo as bênçãos tirando todo fardo de mim com a água salgada mas não isso não posso porque o bolo deve estar pronto para quando chegarem porque se não estiver irão perguntar cadê o seu delicioso bolo de nozes ficarão espantados quando mandar todos à merda se foda esse bolo de merda de areia misturada sangue dos meus dedos nossos triturando mais nozes quase todo o saco que comprou ontem no mercadinho da esquina animal suando olhos inflamados o garoto não voltou a perguntar pelo almoço se dane a hora do almoço batendo no chão com o martelinho movimento máximo da mais pura manifestação martela agora as paredes da varanda ficaria melhor assim repete mais vezes o filho ouve o barulho corre para ver ela corre atrás dele se tranca no banheiro não mãe não faz isso por favor cala a boca merda quebra os vidros da sala tritura os restos de nozes que tinham se espalhado pelo bater desenfreado não queremos mais parar as marteladinhas não mais desejamos deixar unidas as coisas mas separar destruir os pratinhos que os familiares irão trazer esta noite serão deliciosos titia o frango assado meu avô o velho vinho tinto tudo perfeitinho e lá vai mais uma noz parar longe havia errado a mira sentimos o estômago doer a cabeça um tanto corre até a cozinha para pegarmos a vassoura juntaremos todos os cacos e nozes e sangue e pele e areia e concreto depois do almoço e do cochilo irá preparar como há mais de vinte e cinco anos


Gabriel Sant’Ana

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Patinação no gelo


Completamente fora de controle rodopiando na pista de patinação no gelo, a felicidade contagiante estampava-se e se irradiava pelos seus olhos, seus lábios. Patinava ora rápida ora vagarosa. Aquela gostosa sensação do vento sobre seu rosto, espalhando seu cabelo para os lados. Sua mãe a fotografava feliz, não perdia um movimento sequer, seu dedo atento aos rápidos instantes da curva da filha, cliques rápidos. E lá está uma boa imagem capturada! Magnífico!
Foi o minuto de procurar alguma coisa na bolsa para perder o triste momento da queda da filha. Como não foi o suficiente responsável para estar atenta à filha?
Parece ter torcido o pé, ou algo do gênero. Lágrimas escorrem de seu belo rosto, seus lábios tremem e sua língua produz um som pavoroso, todos ali param a sua prazerosa brincadeira, ficam paralisados diante da cena.
Não foi suficientemente responsável, não foi fiel à promessa que fizera a si mesma de em todos os momentos de alegria, tristeza, dor, estar com a câmera direcionada ao fato e capturá-lo, guardar para a recordação.
Assim começara quando pariu a filha, fez que o marido entrasse na sala de parto para filmar tudo desde o início, que não saísse sequer para ir ao banheiro. Filmou e fotografou os primeiros passos, a primeira papinha, o primeiro espirro, a primeira fraldinha suja, as primeiras dores de barriga, as quedas na escada, a festa de quinze anos, de dezoito, de vinte e um, os beijos com o namorado na sala da casa, a filha cochilando no sofá, a filha tomando banho, fazendo suas necessidades.
Já tinha mais de cem álbuns de fotos, mais de duzentos vídeos da filha. Todas as quedas, todos os aniversários dela e de seus colegas, as festinhas da escola. As fotos da filha no jardim zoológico. Como foi linda aquela época. A filha debaixo de uma árvore, tomando água de coco, fazendo pose para a foto.
Mas pelo descuido de ir procurar na bolsa o pente, ou o celular que tocava. Que erro irreparável. Não, não. Mas você sabe como foi que a minha filha caiu? Nossa, foi terrível, ela estava vindo de costas e esbarrou naquela garotinha ali de blusa vermelha... Ah sim, obrigada.
A filha continua a cair em pranto. Alguns tentam acudi-la. Dói demais a perna. Foi uma queda brusca. A mãe invade correndo a pista de patinação. Todos ficam comovidos. De fato era muito cuidadosa aquela mãe. Abrem espaço para que ela possa ajudar a filha, fazê-la levantar-se. Minha filha, ande logo, pare com isso, já já a gente vai resolver isso, mas se levanta logo desse chão, sua querida e zelosa mãe não conseguiu fotografar nem filmar o instante em que você caiu, anda logo, se levanta, eu quero que você se levante agora, anda, para de choros e seja obediente, se levante, foi só uma quedinha, se levanta e retorne ao lugar onde você estava antes de patinar de costas e esbarrar naquela menininha ali de blusa vermelha, ainda bem que ela não se machucou, imagina, uma menininha de cinco anos toda quebrada, anda logo, ei moço, vem aqui, é, vem aqui, levanta a minha filha, estão olhando o que, isso, levanta, com cuidado meu amorzinho, anda minha filhinha, isso, que lindinha, sua mãezinha vai voltar pra lá e filmar tudinho do jeito que foi, não fica assim não, depois nós vamos fazer um lanchinho, deixa que eu pago, não precisa gastar a sua mesada, pronto, pronto.
Ela retorna ao local privilegiado em que daqui alguns minutos irá filmar com o máximo de perfeição o momento exato da queda, apesar de ser uma repetição, mas tudo sairá do jeito que foi há cinco minutos atrás, assim deve ser. Anda logo minha filha, pode começar. Todos se sentem também, de alguma forma, obrigados a retornarem às posições em que estavam naquele momento. Movidos pelos gritos e ordens daquela mãe refazem os movimentos, os giros, a filha machucada, dolorida, algumas lágrimas nos olhos e baixos gritinhos, refaz o caminho, esforça-se para patinar de costas, a mãe lhe grita que mude a feição, que não aparente dor alguma, a filha esboça um sofrido sorriso, ficou bem, continua a patinar de costas, a menininha de blusa vermelha patina mais rápido em direção à filha, assim que aconteceu, a menininha patinava sem prestar atenção às pessoas que vinham em sua direção.
Magnífico. Não tão perfeito como deveria ter sido. Mas se gravou. Agravaram-se as dores, intensificaram-se os gritos e choros e lágrimas. Não chore tanto assim, anda logo, vamos agora fazer um lanche e depois eu te levo no médico, ficou ótimo, meu amor, ótimo, lindo, você já devia estar acostumada com essas coisas, é assim essa vida, eu hein, não se lembra daquela vez no clube, que você levou uma bolada no jogo de vôlei e que eu não consegui filmar porque eu estava comprando uma garrafinha d’água, então, o que eu fiz para você não perder aquele momento, para ele não ser esquecido, então, viu, é tudo para o seu bem, meu amor, mamãe te ama muito, viu, vamos lá, comer aquele delicioso hambúrguer...

Gabriel Sant'Ana

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

De como se estrutura em narrativa um copo d’água, uma carta antiga não aberta e um banco de praça coordenados

Alisa a folha nova sentindo sua brancura, sua lisa textura, sentindo a prazerosa angústia de ter, não sabendo de que maneira, de corromper com seu vernáculo as brancas e intactas páginas com alguma historieta.
De fato precisava escrever a uma amiga sua, há muito lhe prometera notícias e novidades se houvesse; como não vinham, postergava a tarefa. E assim se passaram quinze anos sem uma linha escrita no caderno que especialmente comprara para aquilo.
Na verdade a brancura da folha era de uma brancura amarelecida pelo tempo em que fechadas ficaram entre muitos livros empoeirados e roídos na sua estante. Hoje, sem razão ou motivo conhecido, decidira ler um deles e acabara se dando conta do caderno.
Alisando ainda as folhas fica imaginando, pensando em como sua amiga deveria estar, se acabara se casando, se sucedera o que ouvira de um de seus amigos.
Já tinha escrito no envelope em que colocaria a carta por escrever.

Seria muito difícil para mim, depois de tanto tempo omisso e escondido, aparecer à porta de sua casa sem motivos ou explicações.
Neste momento lhe escrevo com as mais doloridas angústias de um ressentimento infantil.
Mas estas palavras nunca hão de ser lidas ainda que as escreva.
Por mais de vinte anos esperei pela exata hora em que estas folhas se envelhecessem a tal ponto que parecessem de um tempo em que realmente fui feliz, que parecesse que fora comprado para que eu lhe escrevesse poemas quando fosse seu aniversário ou, todos os dias, arrancando uma folha lhe deixasse recadinhos amorosos e apaixonados, mesmo um bom dia, te amo!.

Suas pernas se agitam e seus olhos se umedecem quanto mais se relembra da época em que estavam juntos, em que eram felizes. Levanta-se do banco para beber água, talvez assim se acalmasse um pouco.

Mas quando você decidiu ir, todos os dias eu voltava àquele nosso especial lugar, me sentava naquele mesmo banco da praça onde nos encontrávamos e discutíamos bobagens de literatura e criticávamos nossos próprios contos e poemas, ridículos poemas, ridículos contos mal escritos, e nos achávamos escritores...

Suspende o fluxo da escrita e manda uma mensagem para o celular da amiga.

Já comecei.

Mas ainda que doloroso, tínhamos feito nossa escolha em comum acordo, em lágrimas mútuas

Parou de escrever sem ter colocado o ponto final. Decidiram que não terminariam com uma pontuação sequer.

Terminei. Amanhã chegará.

Quando ela recebeu a primeira mensagem, ao ouvir o celular tocar, já esperava ser dele. Arrumou-se. Bebeu um copo d’água no mesmo instante que ele e foi para uma praça que distava poucos metros de sua casa.
Tanto tempo que viveram juntos foi formando neles um hábito comum de atitudes e pensamentos, hábitos e manias.
Leva consigo o copo d’água para a praça onde ficaria esperando pela carta.

Dobrou a missiva e pôs dentro do envelope. Colou.

(em letras pequenas para caber no espaço)
Querida, eis a carta que deixei por envelhecer e que recebes e que não deves abrir. O que nela está já sabes de cor.
Deves como de costume pegar um copo, enchê-lo de água e ir até a praça do teu bairro. Lá chegando sentes no primeiro banco que vires, beba a água de forma a te engasgares. (leva contigo isto). Também eu farei o mesmo.
De forma que engasgados nos encontraremos


[Dados 3 elementos em que um não se sobressaia ao segundo nem este ao terceiro nem este ao primeiro. Relação paratática.
E 1 = carta antiga que não foi aberta; E 2 = copo d’água; E 3 = banco de uma praça
Estes numa relação que gera um resultado Y que deve ser estranho.
Estranho – evento que foge à naturalidade das coisas reais e pragmáticas.
Y perpassa gradativamente ascendente toda a narrativa.]

Gabriel Sant'Ana

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Árvore de Natal


Como isso começou? Ah... fico um pouco envergonhada... foi algo muito particular, muito íntimo... Mas vou tentar explicar os pormenores à medida que for me lembrando dos eventos, dos motivos, das pessoas, enfim, de quase tudo; e mesmo que me lembre de tudo, acho que não seria totalmente certo ou real, pois é impossível resgatar com toda fidelidade os fatos que ocorreram em um momento específico, impossível fazer com que ele se apresente tal como aconteceu; nossas memórias e linguagem apenas indicam um fato de acordo com o que achamos ter sido.
Mas vamos atrás.
Sempre gostei, adorei a festa de Natal. Aquelas luzes, aquelas cores, aquela sensação incomparável de um clima ameno, uma tranquilidade típica da cena do presépio, algo tanto quanto bucólico.
Todos os anos, arrumávamos nossa casa, ajudava minha mãe nos preparativos, na cozinha, na arrumação da casa.
Cresci com esse costume.
Mas algo me foi tomando conta, uma vontade cada vez mais constante de arrumar não só minha casa, mas também as dos vizinhos, todo o prédio. Não acham que estou correta? Que nessa época tudo deve estar brilhante e belo para celebrar o nascimento do Cristo? Por que um prédio tão tradicional e antigo desta rua deveria estar nesta data tão morto e apagado?
Alguns concordaram. Outros ficaram sem nada dizer. Quatro pessoas me ajudaram a arrumar a frente do prédio. Acabou faltando algumas guirlandas, alguns pisca-piscas...
Mesmo assim não esmorecemos, tudo se nos põe à prova e não desisto em casos assim. Estava decidida a conquistar mais pessoas daquele prédio.
Todos os dias, deixava mensagens dentro das caixas de correspondência, mensagens bem escritas dizendo os motivos de arrumar o prédio e dentro de cada apartamento, demonstrei cada proposta, eram argumentos a que ninguém tinha um contra.
Aos poucos foram cedendo. Já estava certa disso.
E ficava umas três ou quatro semanas ajeitando, preparando os apartamentos de cada vizinho para o Natal. As árvores, os presépios, a mesa da ceia, as roupas novas que vestiriam à noite, a arrumação dos armários, a limpeza de cada cômodo, tudo eu fazia para estar à altura daquela noite tão especial.
Não só isso. A cada criança e adolescente eu dava aulas de etiqueta, explicava a história daquela festividade. Educava, enfim, retirando todo mau hábito. Com os adultos eu fazia quando estava no seu apartamento, durante os preparativos, conversava delicadamente sobre as mais altas razões de se preparar para a noite. Difíceis eram os mais idosos, não todos, mas aqueles que não tinham seus parentes, filhos, netos por perto, seja qual fosse o motivo. Mas com minhas palavras e as técnicas necessárias, conseguia convencê-los.
De fato consegui todo o prédio. Mas falta mais. As casas e outros prédios da minha rua, alguns deles não têm esse costume. Isso me deixa muito infeliz.
Amanhã irei até lá.

Gabriel Sant’Ana

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

II Cantar

osculum si sumat os ab ore
          Carmen 78


Vulnerável tornei-me
teus olhos me acertaram
e fico de desejos ferido

Uniria ao teu o meu corpo
em deliciosos laços delicados
e de dois faria um só coração

Um só querer enfim seria
Um só cuidar enfim seria
Enfim teria

Teu amor me fez cativo
e me obriga a duros pesares
............................................

Vem logo, vem
e me cura desta azia
que me queima o estômago
que me entope o peito
que me não deixa a mim

De tudo fiz
De nada adiantou
Doril, chá de boldo
água benta, oração
a são Brás

Ah! que bom seria
se recebesse beijos de tua boca
se os tomasse num virar de rosto
se os ganhasse como prêmio

Ai! Vênus propícia, atendei
atendei a mim suplicante
de suplícios castigado!

Ai! Me escutai!
Fazei que ela me olhe
que esteja disponível
neste dia de angústia!

Já agora acendo velas,
deixo ao chão cigarros acesos,
oferendas na esquina da rua dela.
Ao passar seja agradável a vós,
confiante vos oferto!

Gabriel Sant'Ana

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Da mulher do “jardineiro”


A retórica do jardineiro entre motivos que nem ele sabe quais sejam, por piores que fossem as palavras ou atos da mulher do narrador dessa história, ele não poderia, sequer deveria, ter trocado sua própria mulher por uma planta, mesmo que esta fosse a mais bela de todas.
Eis aqui a retórica da mulher do jardineiro.
Se é que alguma vez houve uma retórica do tal jardineiro – que por sinal não demonstrou muito talento para as construções sintáticas e estilísticas que deveria saber e dominar, visto ser ele um advogado, conhecedor de técnicas discursivas complexas com finalidades não muito francas ou respeitosas.
Lembro-me agora, remexendo minhas coisas, minhas gavetas, tendo encontrado um poema que me tinha escrito por ocasião do nosso quinto aniversário de casamento; lembro-me agora dos péssimos modos que tinha quando lhe pedia, atentem-se ao fato, quando lhe pedia que fosse comprar pão para nosso café da manhã nas tardes de sábado. Respondia-me que não lhe caberia fazer aquilo, pois aturava todos os dias filas enormes nos fóruns da cidade indo de lá para cá com papéis e mais papéis de processos que pareciam não ter fim e, tanto trabalho, para não ganhar quase nada – assim me dizia.
E dava desculpas atrás de desculpas, até que eu me cansava e ia eu mesma comprar o bendito pão; pão este que ele comia com grande alegria, quase todos ele comia.
E quase sempre era a mesma maneira de falar, pouco gesticulava, muitas vezes gaguejava, é fácil notar isso, pois ele a todo momento faz pausas e intercala frases a fim de conseguir um tempo para recobrar o fôlego. Era insuficiente e irrisória em sua técnica oratória. Agora me lembro.
Se houve alguma forma que busquei para que ele desistisse do nosso relacionamento? Talvez. Houve um dia em que estava na feira e me deparei com uma bela rosa.  Em nosso quintal havia, naquela época, poucas plantas. Rosa bela, amarela, e mais brilhante quando um raio do sol lhe tocou as pétalas. Fui tomada de uma forte sensação que me fez comprar aquela rosa.
Não faço aqui grandes inversões ou divagações; apenas minha memória e o que vivi; não quero me estender para não ser cansativa; não quero igualar-me ao seu estilo.
Houve uma forma, um dia em que foi mais que necessário livrar-me daquele fardo. Leio agora meu diário – neste dia mesmo fiz algumas rápidas anotações.
Noite. Preparei uma deliciosa comida, arrumei a sala. Preparei o ambiente. Propício. Vesti-me conforme a ocasião. Velas. Incenso. Perfume. Creme para pele. Não seria para livrar-me, mas para prová-lo.
Não me correspondeu. Levara para a mesa um esquisito vaso no qual, segundo ele, havia uma semente de uma planta da qual ele iria cuidar com exclusiva dedicação.
No dia seguinte suas malas estavam prontas – tive o desprazer de fazê-lo com minhas próprias mãos durante toda a madrugada. Ele não quis aceitar, tentou inclusive me agredir, mas estava eu munida de vassoura e ferro quente, não ousou levantar as mãos contra mim. Só tive estas palavras para ele: Vá cuidar desse vegetal longe de mim; já estou dando início à nossa separação e já mudei meu status no Facebook. Adeus!

Gabriel Sant'Ana

terça-feira, 20 de novembro de 2012

1º Cantar


Teus lábios mais doces que o mel
Tuas mãos mais suaves que a brisa da manhã
Teus pés mais delicados que a água do rio

Toca-me com suavidade
E me explodo de amor
Contorço-me de paixão
Vendo teu corpo
Deslizar-se no meu

Foram sete
E mais um dia e uma noite
Em que me deste teus dons
E me saciaste os desejos

Quatro coisas são preciosas em ti
Teu rosto fonte de toda beleza
Tuas palavras
Mais sábias que todos os Provérbios
Tua fidelidade equiparável a uma deusa
Tuas mãos dedicadas em dar-me
Os mais carinhosos afetos

E uma quinta supera as demais
A tua própria existência

Gabriel Sant’Ana

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

"Meu táxi - um divã"

Faltam alguns dias para o lançamento do livro de Paulo Cesar Martins, "Meu táxi - um divã", do qual tive o prazer de fazer a revisão e a sinopse.

Não quero aqui fazer outra, ela pode ser lida, inclusive, no site que o Paulo criou: http://paulocesarj.wix.com/meutaxi#!untitled/mainPage.

No entanto, aqui quero deixar algumas palavras sobre esse livro e meus agradecimentos pela confiança que teve o autor em pedir que eu revisasse seus escritos e depois lhe escrevesse a sinopse.

Se os leitores ainda não conhecem o Paulo, adquiram seu primeiro livro "20 anos de praça. Crônicas de um taxista". São histórias curtas e engraçadas, rápidas como uma viagem de táxi, e prazerosas!

Mas, no segundo livro, temos, mais do que cenas engraçadas e rápidas, uma reflexão maior sobre questões humanas, que se passam no Rio de Janeiro, mas que, posso dizer, poderiam ambientar-se em qualquer parte ou em qualquer cidade: são aflições, perdas, histórias de superação, desabafos; além disso, percebo uma maior elaboração na escritura, no desenvolver das narrativas, tal como a relação temporal em que narra fatos num  passado perfeito mas algumas vezes dando maior vivacidade usando o presente; ou mesmo questões discursivas como o uso de diálogos ou o discurso indireto livre, ou ainda as opiniões do narrador que se percebem leves durante o narrar.

Perceberão os leitores outras coisas que não cabe aqui comentar.

Ficam aí minhas palavras.

Gabriel Sant'Ana

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Desencontro na manhã de segunda


Quente cubículo público. Odor de cloro. Chão molhado. Primeiro a entrar naquele dia. Fecha a porta. Grande. Como sendo reservado a cadeirantes.
De fato deveria ser assim para todos os tipos de tamanho. Mas via que não caberia ali cadeirante algum.
Via apenas aquele espaço pequeno e o buraco que salvaria o sufoco das contrações perturbadoras a que todos estão sujeitos seja pela manhã, tarde, noite, madrugada, na hora do sexo, nos minutos iniciais de uma prova de concurso, na igreja, no parto, nos parabéns, no enterro. Desfivela o cinto, abre a bermuda, abaixa o zíper, retira a bermuda, a cueca, a blusa polo azul. Coloca os pertences ao lado esquerdo; do outro, há a lixeira. Agacha-se, é sabido ser perigoso sentar-se, o risco de uma doença infecciosa, sustenta-se com as pernas, posição adorável de um penitente resignado em expurgar seus pecados com um verdadeiro e puro sacrifício.
Interessante notar seu rosto aflito, não por aqueles incômodos, mas de uma vexaminosa vergonha caso entre ali alguém para usar o outro espaço para, talvez, já que é preciso estar atento às chamadas dos servidores tão aplicados em distribuir senhas, lavar as mãos sujas de segurar no ferro imundo de um ônibus lotado às cinco da manhã vindo da Taquara, Freguesia, Cidade de Deus, Vila Valqueire.
Bastou entrar fechar a porta retirar rápido a roupa jogar ao chão distante da lixeira agachar-se rapidamente contraindo os músculos ir verificando abaixo de si caso algo escapasse pelas bordas ou fosse pelas pernas ou nos pés observando contraindo a barriga expelindo esguichando esvaindo saindo em jatos fortes constantes contra a água borrando enegrecendo todos os cantos tomando o mal cheiro
indo a limpeza do cloro sabão que antes o funcionário contratado salário atrasado havia feito dedicado agradecendo em preces o trabalho digno não fazendo sequer um único jato de mijo
mal cheiro fezes líquidas: bem-estar aliviado do transtorno gerado pelo trabalho de digerir pizza refrigerante cervejas churrasco torta bolo de aniversário do sobrinho refrigerante pipoca hambúrguer docinho de coco brigadeiro refrigerante jujubas salgadinhos saideira de cerveja pipoca pizza sorvete bolo docinhos
Desenrola um bom pedaço do papel. Cinco, sete vezes. Nenhuma sensação estranha. Não haveria segunda vez naquela manhã. Pega do chão as roupas, veste a cueca, a bermuda, sobe o zíper, fecha o cinto, veste a blusa polo azul. Vira-se para trás. Não pensou no trabalho do funcionário que mais cedo havia limpado aquele espaço. Pensou na vergonha, teve pudor, receio, refletiu moralmente, não cairia bem outra pessoa em suas necessidades encontrar para própria surpresa um verdadeiro esgoto de merda na privada. Puxa a cordinha. Desce para sua própria salvação a merda líquida.
Menos mal. Se fosse merda dura, empedrada, correria o risco de entupir o banheiro, causando mais dor de cabeça e sofrimento, teria de procurar a sala da limpeza, do lado de fora, pedir por gentileza trouxessem um balde ou um desentupidor para desobstruir não precisa não se incomode ele mesmo faria isso porque ele mesmo que produziu aquela merda não não que isso estamos apenas fazendo nosso serviço não se envergonhe todos os dias desentupimos merda de banheiro limpamos vômito e muitas coisas deixe disso é coisa comum então está certo obrigado pela ajuda muito obrigado mesmo depois eu pago um cafezinho que isso homem não precisa mesmo então está bem muito obrigado mesmo
Repete o habitual ato comum de dar a descarga. Abre a porta. Lava as mãos.
Apressa-se em sair. Precisava conseguir se consultar com o clínico geral, precisava fazer os exames de rotina, conseguir encaminhamento para o otorrinolaringologista.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

11


Barulho do funcionamento. Pessoas silentes olhando ansiosas os números avermelhando-se na subida crescente, desejantes. Nada mais. Sacro sepulcro, resignada oração esperançosa. As órbitas em movimento. Respiração abafada. Segurando a tosse, o espirro. O celular no silencioso. O diário trabalho mecânico de elevar carga humana. Doze andares. Um peso certo exige. Espremendo um tanto para compensar a pressa angustiante contra o atraso. Sempre que para, a beleza estática das conformidades das massas dissipa-se em um fluxo seminal de odores, cabelos, pernas, bolsas, esbarrões, desculpas e obrigados.

Mas aquilo estava ali. Sem aparência, como todos. Disforme. Disfuncionando. Como todos, sendo seguinte. 

Aquilo era apenas um ruído ou mancha da cena.

Bastava.

Os papeizinhos partidos ao sabor da queda livre. Cair constante, volteando-se pelo vento, demorando-se até atingir.

Aquilo estava ali e todos inertes viram apáticos.

Aquilo era tentando sair daquele mecânico funcionamento sufocante.

Aquilo era indo em papeizinhos.

Décimo andar. Entraram. Fechou-se. Entreolharam-se boquiabertos. Alguns mandando mensagens. Fazendo ligações.

Obrigatória a saída ao chegar ao térreo.

Chegaram.

O barulho da máquina cessou ao abrir da porta.

Gabriel Sant'Ana

Nunca virá a Liberdade ainda que espere;
Cedo ou tarde nunca seus olhos
Hão de voltar. Longo tempo passou
E eu ansioso esperando.
Muito fiz e deixei,
Minha mão ocupei em árduos,
E sempre vazia voltava.
Invoquei tudo quanto deus houve,
E nenhuma palavra.
Só o eco
Da minha rouquidão.
Assim declaro.
As marcas da gilete no rosto
De tanto fazer a maldita barba
Que ainda não cai branca.
Volto ao antigo caminho,
Seguindo teus passos,
Impossível via de imolação
Por que me adentro
E me contamina.
A ti meu silêncio oferto.

Gabriel Sant'Ana

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Teu corpo inda sussurra

Divago pelos poros
pelo ar sufocado, preso.

Distendido na cama,
sequer manca, ou finge.

No espelho desfigura.

Pelos, seios, rubores
gemendo, desejando.

Recebendo em ardência.
Subjugando-te a mim.

Doze horas no quarto
de subúrbio barato,
num estrado rachado.

Teu corpo inda sussurra.
Asfixiando, sem peso,
em sangue, em látex,
em algodão e sêmen.





Gabriel Sant'Ana

Entre

E viu que a luz era boa.
E a separou das trevas.
Pelo seu verbo fez
vingar sempre a manhã.
Vitoriosa no brilho.

Da minha escuridão,
clamo a ti, Jubilosa!
Me canso de insistir
em me ocultar, fugir.
Lanças sobre meus olhos
teu superior orgulho -
a tua felicidade.

Sempre estarei presente.
Entre montanhas, bosques,
rostos intumescidos,
acovardados, vis,
no recosto da sala,
em mil pontos de ônibus,
nos desvios de ruas,
nos sonhos mais íntimos.

Fomos separadas por
versículos somente.
Disposição do texto.





Gabriel Sant'Ana

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Versículos perdidos do evangelho segundo Lucas, capítulo 2


35 b E Simeão virou-se e lhe disse: 36 Este teu filho será causa de muita dor e sofrimento. 37 Não será uma espada a ferir-te o peito. 38 Quando te lhe virares as costas, do céu atingi-lo-á impiedoso projétil e, como a leoa que carrega o filhote na boca para levá-lo à margem do rio, 39 assim tu levarás o corpo de teu filho à tumba 40 e ali tu sentarás e chorarás o dia em que ambos vieram ao mundo, 41 pois sabias que não se vive sem experimentar a dor da perda de um filho. 42 Mas não te desespere, chegará o dia em que não mais precisarás recordar, 43 pois como o sol se levanta no oriente e se põe no ocidente, 44 assim também teus olhos hão de nunca mais ver a luz.


Gabriel Sant'Ana


Senhora da Piedade de Guadalupe


Domingo. Comunidade festejando mais uma vitória do time ao som do pagode, muito churrasco, cerveja, refrigerante para as crianças. Pula-pula, pelada no meio da rua. Noite refrescante. Lua e estrelas. Céu limpo. Namorados se beijavam e se prometiam uma vida melhor, um apartamento na Barra ou em Vila Isabel.
Foi o momento de levar o filhinho de um ano para casa.









Mas quem é? Não tem identidade nem certidão de nascimento. Só existe de boca-em-boca. Só existe porque está no chão com a cabeça estourada pelo tiro de fuzil. Só existe porque o pessoal a conhece de tanto que ela passava todos os dias indo para o colégio de mãos dadas com a mãe. Só existe porque saiu hoje no jornal.









Mais uma nossa senhora da piedade chora seu filho nos braços. Mais de uma lágrima rola de seus olhos, sua garganta está ressecada de angústia e desgraça. Multidão indignada, aflita, senhoras cardíacas desmaiam. Alguém avise o pai.









Terá o corpo enterrado quando os pais resolverem a documentação.



Gabriel Sant’Ana

sábado, 18 de agosto de 2012

Quinta-feira na Lapa Ou Fim do vampiro travesti


Porra, pegaram minha cadeira. Dizia-se começar a madrugada. Olha próximo a si. Tem alguém usando essa cadeira? Não. Retira a mochila e pega a cadeira. Bebia cerveja de canudinho no copo de vidro. Fosse um travesti vampiro saído de um conto suburbano.

Não era Copacabana. Não fosse lugar algum. Dois rapazes se divertindo ao violino, gente na rua dançando ao som de música alguma, um marombado rebolando ao chão e um viciado catador de lixo sambando, sorriso nos lábios, chinelo, balançando o saco plástico cheio de latinhas amassadas.

Cervejas, cachaças. Mais diversos visuais, ou estilo.

Desfile alcoólico e sexual de qualquer coisa.

Dois cães vira-latas servindo e brincando de tapas e empurrões. Um deles tinha chapéu de cowboy e um sorriso simpático. Mais alguma coisa? Mais uma cerveja? Não, só isso aqui mesmo.

Ação alguma. Porque é impossível.

No meio da rua, parado, braços cruzados, pescoço curvado, sorriso estranho, mochila nas costas, latinha em uma das mãos. Observando a cena.

Minutos atrás estava em casa arrumando-se para a madrugada que lhe prometia. Olhava seu armário e escolhia o que vestir. As mesmas roupas que usava sempre em qualquer ocasião. O que distinguiria seria a mochila. Desce as escadas. Bate na porta da vizinha. O marido estava no trabalho. Poderia entrar? Senta-se no sofá, pede uma xícara de café. Era da manhã, servia?

Vai para o quarto. Deitar? Não é um crime. Olhos tentados, corpo desejoso. Por fim, elimina-se a razão. Vira-se para o lado, mochila no chão. O quê? Uma faca. Fecha a mochila, veste-se, bebe um copo de água, tranca a porta e atira-se na madrugada.

Para no meio da rua, cruza os braços, encurva a cabeça. Encaminha-se a um bar. Compra uma latinha de cerveja. Volta para a rua. Fica observando.

Passam carros. Passam pessoas. Continua parado no meio da rua, observando, sorriso no canto da boca, mochila nas costas.

O travesti vampiro, de uns dois metros, salto alto, roupas brilhantes, sentado numa cadeira, bebe sua cerveja de canudinho, invejando as jovens que se ofereciam aos amigos, pensando em qualquer coisa, não pensasse em nada, se fosse um ser, esperando algum interessado em seus anos de experiência prostituída. Levanta para ir a um banheiro.

Sai de sua observância e senta na cadeira. Era meio da madrugada. Porra, pegaram minha cadeira; tem alguém sentado aí?

Pega a cadeira e coloca na mesma mesa em que estava. Posso? As mãos dele estavam tremendo, seu sorriso extinguira-se.

- Durante quinze anos nunca mais conversei com ninguém, perdi todos os meus amigos, não me casei, não tenho namorada, apenas relacionamentos rápidos.

- O que você gostaria que eu fizesse?

- Apenas me escutasse. Minha vida tem se passado em levar esta mochila para todos os lugares. Para lugar nenhum.

- E o que tem nessa mochila?

- Cabeças de pessoas que amei, sonhos, minhas esperanças aniquiladas e fotos de quando era criança.

- Você é artista?

- Ainda não. Mas posso lhe mostrar minha arte. E você é o quê?

- Sou um personagem de um conto suburbano, poucos o leram, ainda não foi lançado em livro. Tenho guardado meu dinheiro para publicar o livro. Tenho anos de experiência. Essa moda de filmes de vampiro acabou com a minha vida, porque todos se acham vampiros, todos se encantam com essas historinhas. E não acreditam quando falo que sou um vampiro travesti...

- Quero muito expor minha obra a você, mas deve me jurar que não fará nenhum mal a mim.

- Tudo bem. Já me cansei da vida. Já me cansei de estar em folhas que ninguém lê e que sempre são alteradas.

- Entendo.

Levantam-se. Vão para um beco próximo de onde estavam.

- Eis minha obra.

Abre a mochila e rolam dali cabeças de sete mulheres.

- Essas são as cabeças de sete demônios. Uma era viciada em drogas, outra era atendente de telemarketing, aquela era uma garçonete displicente, aquilo traía o marido, ali uma prostituta moralista que não fazia anal, aquela transava com o padre da própria paróquia, e a última fez aborto. Meu número é o oito e preciso de você para terminar a obra. Sua estranheza é repulsiva e me incomoda. Fique de joelhos!

Abre a calça. O vampiro travesti faz o que deve. Não romperia o juramento. Pega a faca da mochila. Bebe o sangue daquele esquisito personagem. Completara a obra. Põe fogo no corpo. Só existirá a cabeça na mochila, somente uma lembrança.

Passos lentos. Volta à rua. Para. Compra uma latinha de cerveja. Observa dois rapazes tocando violino. Encurva a cabeça, sorri. Fica no meio da rua. Sente a vertigem e a felicidade do término de uma obra rigorosa e demorada.

Dois cães vira-latas servem bebidas e se divertem com implicâncias mútuas. Assobiam quando passa uma deliciosa mulher. Gargalham. Já estava na hora de um deles voltar para casa, terminara o horário de serviço.

Uma catadora de lixo faz pose para a foto, fosse um trabalho de sociologia ou artes para a faculdade.

Quase cinco horas da manhã.

Gabriel Sant’Ana

sábado, 11 de agosto de 2012

Banho de Odisseu


Apenas o que é necessário

Cumpriria factualmente

Sem dúvidas e temor



Apesar de o coração



Apesar de as lembranças



Feito magnífico de linhos puros
Bordados de ouro
Bacia de água de fino odor
Taças refinadas

Argênteas taças de licores

Delicadas servas responsáveis
Atentas às ordens recebidas

Dispostas ordenadamente
Três

Braços postos ao serviço

Pernas bem treinadas

Olhos inflexíveis


Óleos manuseiam
No heroico corpo
Desgastado por errares
No mar infindos

Vigoroso viril

Contornam a forma
De líquido puro

Sujeiras se dissipando

Cansaço se diluindo por
Seis leves oleosas



Animicorpórea ablução


Rito antigo


Lata refeição após

Carnes várias

Diversas bebidas




Coito prazeroso

Milênios praticado igual
Ela sob ele
Ele sobre ela

Deitados sobrepostos

Variações do ato

A
Trás
Ante
Contra
Após

Noites e mais noites vinte
Deitaram-se entrelaçados

Onde só restam páginas amareladas



Gabriel Sant'Ana

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Minutos


Mais uma noite, mais uma história para dormir.

De costume, o filho deitado, enrolado no cobertor, olhinhos ávidos por mais uma ficção e ao mesmo tempo sonolentos e semiabertos.

Sentado ao lado, mente atolada de compromissos e responsabilidades, contas para pagar, mais contas que ainda fará, a mulher para acariciar depois. Já de pijama também. Barriga cheia da janta. Estômago sobrecarregado com bife de alcatra bem-passado, arroz, feijão e farofa, não faltou o delicioso suco de maracujá, de uma marca barata. Mais que satisfeito. Solta alguns arrotos, o filho sempre ri – não foi diferente.

Não foi diferente a história que contou. Sempre o mesmo enredo, mesmos personagens, mas nunca se chega ao fim.

- Que tanto você faz aí nesse quarto? Vem logo!

Não dava ouvidos aos clamores da mulher. E começava sua encantadora história. Estava André vagando pela rua à noite e viu um brilho muito forte que parecia vir em sua direção. Ele era muito curioso e esperou o brilho. Não era um brilho, mas um grande ser, com asas, uma espada, parecia um anjo. E o anjo disse para André que, quando ele fosse adulto, ele teria um filho que seria o maior orgulho da sua vida. Depois disso, o anjo sumiu e André voltou para casa feliz e um pouco assustado pela aparição de um ser tão iluminado e fantástico. Agora durma e amanhã continuaremos.

Deitou ao lado da mulher e se amaram como todas as noites. Após o amor, cada um se vira para seu canto para sonharem e aproveitarem míseros minutos de torpor e descanso e daqui a mais poucos minutos serem despertados pelo despertador do celular com uma musiquinha irritante, própria para isso.

O dia é o mesmo para todos.

Chega a noite. Após o jantar, escova os dentes e vai ao quarto.

- Vê se não demora! Quero terminar mais cedo essa noite, ontem fiquei arrasada, não consegui nem acordar direito.

Está calor e o filho não está coberto, está com um short e camiseta. Olhinhos semiabertos, ansioso pela continuação da história, pelo fim. Senta-se ao lado, começa a narrar. André caminhava na praia, era fim de semana. Reparou que algo na água se mexia, mas não era um peixe ou tubarão. Era muito curioso e se jogou ao mar. Nadou, nadou, nadou. Era algo como um homem-peixe. Muito estranho. E esse homem-peixe levou André para o fundo do mar para conhecer uma pessoa.

Não fizeram amor esta noite.


Gabriel Sant’Ana

sábado, 30 de junho de 2012

Copo de vidro


Muitos copos de vidro no secador da cozinha. Copos iguais, de vidro.
Os mesmos sacos de açúcar da mesma marca, os mesmos pacotes de biscoitos dentro do armário.
Plásticos, vidros, letras grandes e miúdas, cores várias – igual.
A mesma mão que apanha os objetos do armário e os transforma em café da manhã, almoço, jantar.
A mesma pele que se envelhece com o passar dos meses, sempre mesmos.


Pequena, era divertido com minha mãozinha, a esponja e detergente lavar os copos, os pratos, os garfos, as colheres de sopa. Ajudava mamãe também com as roupas. Estender no varal à luz fustigante do sol. Depois, à tardinha, tomá-las, passar com o ferro, dobrar e guardar nas gavetas.
Eram belas aquelas pequenas mãos. Só as marcas na palma. Nada mais.
Lembro os primeiros calos nos dedos quando comecei a escrever. Antes só ligava os pontinhos, fazia as letrinhas. Lindo desenhá-las. Minha tia me deu um diário. Marquei suas folhas com meus pensamentos, imaginações, sonhos. Guardava bem escondido.
Agora não escrevo uma linha sequer. Perdi aquela sensação prazerosa de preencher o branco de mim mesma. Não há nada branco.
Branco foi o meu vestido. Eu e minha mãe costuramos. Noites e dias, nossos dedos cosiam, dedicavam-se a uma futura brancura eterna, imaculada. Quantos conselhos se teciam entre nós. Lembranças e promessas se embaraçavam com uma dificuldade fácil e refazíamos o caminho.
Aquele ano. O dia, não me sai da cabeça. Talvez nunca saia.
Mas nunca foram diferentes seja aquele ano e o de outrora. Fomos nos tornando mais velhos, evidente. Um dia se deita para se levantar logo em seguida. Sempre igual. Às vezes chuvoso, com sol, nublado.
Mas me deito, e levanto decaída, ressecada. Há tempo não sou deitada. E fui me secando, aos poucos. Meus lábios ficaram grudados.
Este leite já esfriou. Vou jogar fora depois.


Agora. Vou jogá-lo agora. Tanta economia para nada. Economizar, reduzir, segurar. Para quê? De que adiantou? Nada melhorava. Ia piorando. Sempre. Mesmo que me esforçasse. Mesmo que me dedicasse. Mesmo desgastando estas mãos, este braço, estas pernas, estas coxas. Esvaindo meu corpo para casa, filhos, obrigações, pratos limpos, panelas brilhando, roupas limpas, dobradas, passadas, chão sem sujeira, poeira, móveis arrumados, estantes organizadas, quartos modelo, filhos educados, contas pagas em dia, comida quente na hora, pão francês saído do forno da padaria, lanches aos finais de semana, sobremesas deliciosas, nunca as mesmas porque enjoava.
Vazia a casa. Vazio armário, gavetas. Daqui alguns minutos voltam da escola. O rádio continua na mesma estação. Abaixei o volume, estava incomodando. Mas aqueles copos. Limpos. Algumas arranhaduras pelo constante uso. Alguns já quebrei.
Outros foram levados. Como muitos objetos, roupas, sapatos. Algumas coisas ainda estão ou deixou que ficassem. Retratos rasgados, ou os levou. Alguns ficaram na minha gaveta. Os porta-retratos ficaram vazios, estão cheios de pó. A casa está cheia de pó. Estão fazendo uma obra do outro lado da rua. Inferno. Apartamentos. Futuros vizinhos. Novas famílias na rua. Ou não.
Mas essa tarde quis ouvir um CD que me dera de aniversário. Gosto muito daquelas músicas, meu cantor preferido. Meu CD. Não estava na estante. Rodei todos os cantos à procura. Ficaram alguns. Menos esse. Disse que levaria os seus CDs. Carregou o meu de propósito. Foi com o seu dinheiro.


O leite indo, e ainda um resto branco no copo.


Gabriel Sant’Ana

domingo, 10 de junho de 2012

Na esquina da padaria


I

Dizia assim o bilhete sobre a mesa da cozinha: me encontre na esquina da padaria às 14h. Não se atrase.
Nenhuma assinatura.
Alguns minutos antes dispensara a doméstica, não era necessário fazer o almoço, iria se encontrar com uns amigos no restaurante. Fora tomar banho, se arrumar para sair, e quando foi beber um copo d’água encontra o bilhete.
Ninguém além de Marilda estivera em casa.
Pois bem, vamos à esquina, não nos atrasemos.
Apertou o passo para de fato não se atrasar. Não respondeu à vizinha que lhe dava boa tarde, não acariciou o gato, sequer fizera o sinal da cruz ao sair de casa. Deixou destrancada a porta.
A padaria ficava distante dali, era necessário tomar um ônibus. Demorou mais de dez minutos. E ainda estava lotado. Iria em pé, amarrotaria a roupa, se encostaria em pessoas imundas, levaria esbarrões que desfiariam sua blusa. Não se importava com nada. Estaria na esquina. Faltavam ainda trinta minutos.
Apesar do engarrafamento, conseguiu.
Não havia ninguém na esquina. Esperaria o tempo que fosse.
Agora lembramos que o bilhete não era recente. Quanta infelicidade. Havia escrito ontem para Marilda, pois queria que me ajudasse com as compras para a casa.
Primeiro surgiu Marilda à minha frente depois de eu ter acordado de um pesadelo. Ela foi tão solícita que lhe prometi nunca mais deixá-la só, ela seria para sempre minha. Pagaria caro pelos serviços. Ela não me respondeu, mas seus olhinhos. Eu ainda estava na casa de um tio, passando minhas férias. Quando voltasse, pensaria em como seria minha casa.
Ainda não tenho muita ideia de como é a casa. É algo vago, ainda há tempo para pensar nisso depois.
Mas veio, então, a ideia vaga de casa: um espaço com quarto, sala, cozinha, banheiro. E em seguida, como que por consequência, o lugar onde se localiza, também vaga, algo como um bairro, talvez um subúrbio.
Já existia Marilda, a doméstica. Veio surgindo informe esse alguém para talvez completar alguma coisa, que ainda não sei o que é ou será.
Infelizmente, ele surgiu no dia seguinte à minha ida ao supermercado. Infelizmente porque o deixei livre, e ele acabou por descuido lendo o bilhete.
Deixei-me também livre de observar e controlar o que se sucedia.
Agora está ele ali na esquina da padaria esperando alguém que talvez nunca virá.
Vou deixá-lo para pensar melhor no que farei.

Gabriel Sant’Ana

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Fotografias


Traços genéricos

Desde pequeno, T. era aficionado por fotos, retratos, álbuns.
Em todos os cantos da casa havia alguma foto. Sempre colocava dentro de um mesmo tipo de porta-retrato, que comprava numa lojinha próxima de casa.
Eram sempre fotos de si mesmo. Nunca com um amigo, com parentes, ou com mulheres.
Tais tipos de foto ficavam dentro do quarto. Todas viradas para sua cama, que ficava no centro.
As ocasiões em que tirava fotos eram as mais diversas: encontros com os amigos no shopping, jantares, festas. Nunca sorria, não mostrava nenhuma expressão, seja de tristeza ou de felicidade.


Foco

Dificultoso saber quando dizia o que realmente pensava, ou melhor, dificultoso era fazer com que T. dissesse alguma coisa.
Uma vez filosofara expressando que as palavras devem ser ditas quando nenhum outro modo de expressão consegue passar a ideia que se quer transmitir, por isso preferia fotografar o que acontecia, as pessoas, as situações, e sem ninguém se dar conta de que eram capturadas pela lente, pois quando há consciência por parte do objeto, perde-se a essência do fugaz.
Percebera-se capaz de capturar a alma das pessoas, dos seres, do ambiente capturando-lhes a imagem, quando no aniversário de um amigo fotografando o momento dos parabéns uma fraqueza tomou conta das pessoas e a vela do bolo foi se apagando aos poucos. As vozes foram se tornando mais fracas e roucas. O aniversariante desmaiou e foi levado para o hospital, mas acabou não resistindo, teve uma parada cardíaca.
Apesar de triste, tal situação deixara T. feliz. Como nunca em toda aquela vida em preto-e-branco tivera igual.
Precisava de mais fotos. Necessitava de mais ambientes, das mais variadas energias.
Fotografava enterros, festas de crianças, pessoas no CTI, mulheres dando à luz, piqueniques nos fins de semana, casamentos, bodas de ouro, separações, jogos de futebol, espetáculos, show do Roberto Carlos, ambulantes vendendo seus produtos, crianças caindo, suicídios, assassinatos, roubos, incursão de policiais em favelas, missas, procissões, carnaval, término de namoro, prato quebrando, moeda caindo da mão do trocador, trem descarrilando, chuva torrencial, pombos voando.
Instalara na sua casa câmeras.
Mas ainda não estava satisfeito. Demorou a entender que quanto mais emoção tivesse ao fotografar as coisas, menos teria do essencial, deveria ser imparcial, frio como a máquina fotográfica.
Ficou com receio no início. Não saberia se seria o ideal a ser feito. Mas deveria tentar.
Mais de vinte vezes tirou foto de si mesmo.
Quanto mais se fotografava, menos sentia a pulsação do sangue, menos precisava respirar, sua pele se esfriava rapidamente, empalidecia. Conseguiu por completo esvaziar as sensações, o pulsar dos sentimentos dentro de si, tudo capturado e colado nas fotos.
Sentia-se livre, sentia a vida menos pesada, porque menos sentia, menos se preocupava em agradar, se enfurecer, se apaixonar, amar, odiar, gostar, se compadecer, era tudo vão, desnecessário, supérfluo, sentia a vida em si, as coisas através delas mesmas, tudo comum, igual a si mesmo, as pessoas eram aquilo que sempre suspeitara. Conseguia ver claramente qualquer situação, problema, pessoa, objeto. Seus amigos, se é que se pode dizer assim, confiavam nele como se estivessem conversando consigo mesmos.
T. sabia aconselhá-los do melhor a ser feito: endireite a gravata, não se encurve tanto, não pisque, olhe fixo, deixe que o que você sente se torne expresso e capturável, quero guardar como lembrança esse dia. Saía sem se lembrar do que dissera antes, sequer de quem era. Assim era melhor, quanto menos soubesse, menos se lembrasse, menos se reconhecesse, certamente perfeito.
Descarregava as fotos no computador e as imprimia em seguida, e a pessoa ao seu lado.
À medida que a foto ia saindo impressa, a pessoa ia perdendo a coloração da pele, do cabelo, a respiração, sua roupa ia se tornando neblina, ia se misturando à folha que saía da impressora com a foto. Deixava alguns minutos para secar a folha e enquadrava no porta-retrato vagabundo que tinha no armário, aos milhares, não era prático ter de comprar toda hora que tivesse alguém para fotografar.
Já tinha mais de cem fotos em toda a casa.
As fotos das pessoas ficavam no seu quarto. Todas as noites, olhava para elas, sentia-se revigorado após um dia cansativo. Essas imagens eram realísticas, vivas, mesmo não possuindo nada dentro de si, sentia uma satisfação egoísta de autorrealização, mas sem nenhuma agitação interna, sem um riso no canto da boca, ou tremores de alegria, uma satisfação estática autocontemplativa.


Dispersão

Conversando no bate-papo, teve a brilhante ideia. Comprou uma webcam.
Tinha milhares de pessoas adicionadas no Facebook e no MSN. Assim era mais econômico e prático adquirir e capturar cada vez mais um número quase infinito.
Aceitavam os pedidos de amizade que fazia. Aceitavam conversar pela webcam. Apesar de ter milhares de fotos de si mesmo, não colocava uma sequer, mas uma imagem de um boneco de fantoche de madeira. Quando estava a webcam ligada, colocava uma máscara.
Seus tipos preferidos eram mulheres, fanáticos por futebol, pedófilos, crianças, políticos, cantores, artistas, idosos, religiosos, neonazistas, todo e qualquer tipo que fosse o mais vidrado nas próprias crenças.
As pessoas atendiam ao que pedia, faziam a melhor pose, arrumavam o cabelo, trocavam de roupa, expressavam o que sentiam naquele momento com a mais pura sinceridade, e em menos de um minuto eram impressas e enquadradas no porta-retrato, mais uma para a incrível coleção que já tomava conta do quarto, paredes, mesa, chão, a própria cama, T. dormia entre as milhares de fotos espalhadas.
Deu-se conta de que estava em cima da hora, deveria ir para o emprego que arrumara, estava desempregado há seis meses – tinha trabalhado na segurança interna de um supermercado, monitorando os clientes pelas câmeras. Agora trabalha em uma boate, recepcionando e cadastrando as pessoas.



Gabriel Sant’Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...