Traços genéricos
Desde pequeno, T. era aficionado por fotos, retratos, álbuns.
Em todos os cantos da casa havia alguma foto. Sempre colocava dentro de
um mesmo tipo de porta-retrato, que comprava numa lojinha próxima de casa.
Eram sempre fotos de si mesmo. Nunca com um amigo, com parentes, ou com
mulheres.
Tais tipos de foto ficavam dentro do quarto. Todas viradas para sua cama,
que ficava no centro.
As ocasiões em que tirava fotos eram as mais diversas: encontros com os
amigos no shopping, jantares, festas. Nunca sorria, não mostrava nenhuma
expressão, seja de tristeza ou de felicidade.
Foco
Dificultoso saber quando dizia o que realmente pensava, ou melhor,
dificultoso era fazer com que T. dissesse alguma coisa.
Uma vez filosofara expressando que as palavras devem ser ditas quando
nenhum outro modo de expressão consegue passar a ideia que se quer transmitir,
por isso preferia fotografar o que acontecia, as pessoas, as situações, e sem
ninguém se dar conta de que eram capturadas pela lente, pois quando há
consciência por parte do objeto, perde-se a essência do fugaz.
Percebera-se capaz de capturar a alma das pessoas, dos seres, do ambiente
capturando-lhes a imagem, quando no aniversário de um amigo fotografando o
momento dos parabéns uma fraqueza tomou conta das pessoas e a vela do bolo foi
se apagando aos poucos. As vozes foram se tornando mais fracas e roucas. O aniversariante
desmaiou e foi levado para o hospital, mas acabou não resistindo, teve uma
parada cardíaca.
Apesar de triste, tal situação deixara T. feliz. Como nunca em toda
aquela vida em preto-e-branco tivera igual.
Precisava de mais fotos. Necessitava de mais ambientes, das mais variadas
energias.
Fotografava enterros, festas de crianças, pessoas no CTI, mulheres dando
à luz, piqueniques nos fins de semana, casamentos, bodas de ouro, separações,
jogos de futebol, espetáculos, show do Roberto Carlos, ambulantes vendendo seus
produtos, crianças caindo, suicídios, assassinatos, roubos, incursão de
policiais em favelas, missas, procissões, carnaval, término de namoro, prato
quebrando, moeda caindo da mão do trocador, trem descarrilando, chuva
torrencial, pombos voando.
Instalara na sua casa câmeras.
Mas ainda não estava satisfeito. Demorou a entender que quanto mais
emoção tivesse ao fotografar as coisas, menos teria do essencial, deveria ser
imparcial, frio como a máquina fotográfica.
Ficou com receio no início. Não saberia se seria o ideal a ser feito. Mas
deveria tentar.
Mais de vinte vezes tirou foto de si mesmo.
Quanto mais se fotografava, menos sentia a pulsação do sangue, menos
precisava respirar, sua pele se esfriava rapidamente, empalidecia. Conseguiu por
completo esvaziar as sensações, o pulsar dos sentimentos dentro de si, tudo
capturado e colado nas fotos.
Sentia-se livre, sentia a vida menos pesada, porque menos sentia, menos
se preocupava em agradar, se enfurecer, se apaixonar, amar, odiar, gostar, se
compadecer, era tudo vão, desnecessário, supérfluo, sentia a vida em si, as
coisas através delas mesmas, tudo comum, igual a si mesmo, as pessoas eram
aquilo que sempre suspeitara. Conseguia ver claramente qualquer situação,
problema, pessoa, objeto. Seus amigos, se é que se pode dizer assim, confiavam
nele como se estivessem conversando consigo mesmos.
T. sabia aconselhá-los do melhor a ser feito: endireite a gravata, não se
encurve tanto, não pisque, olhe fixo, deixe que o que você sente se torne
expresso e capturável, quero guardar como lembrança esse dia. Saía sem se
lembrar do que dissera antes, sequer de quem era. Assim era melhor, quanto
menos soubesse, menos se lembrasse, menos se reconhecesse, certamente perfeito.
Descarregava as fotos no computador e as imprimia em seguida, e a pessoa
ao seu lado.
À medida que a foto ia saindo impressa, a pessoa ia perdendo a coloração
da pele, do cabelo, a respiração, sua roupa ia se tornando neblina, ia se
misturando à folha que saía da impressora com a foto. Deixava alguns minutos
para secar a folha e enquadrava no porta-retrato vagabundo que tinha no
armário, aos milhares, não era prático ter de comprar toda hora que tivesse
alguém para fotografar.
Já tinha mais de cem fotos em toda a casa.
As fotos das pessoas ficavam no seu quarto. Todas as noites, olhava para
elas, sentia-se revigorado após um dia cansativo. Essas imagens eram
realísticas, vivas, mesmo não possuindo nada dentro de si, sentia uma
satisfação egoísta de autorrealização, mas sem nenhuma agitação interna, sem um
riso no canto da boca, ou tremores de alegria, uma satisfação estática autocontemplativa.
Dispersão
Conversando no bate-papo, teve a brilhante ideia. Comprou uma webcam.
Tinha milhares de pessoas adicionadas no Facebook e no MSN. Assim era
mais econômico e prático adquirir e capturar cada vez mais um número quase
infinito.
Aceitavam os pedidos de amizade que fazia. Aceitavam conversar pela
webcam. Apesar de ter milhares de fotos de si mesmo, não colocava uma sequer,
mas uma imagem de um boneco de fantoche de madeira. Quando estava a webcam
ligada, colocava uma máscara.
Seus tipos preferidos eram mulheres, fanáticos por futebol, pedófilos,
crianças, políticos, cantores, artistas, idosos, religiosos, neonazistas, todo
e qualquer tipo que fosse o mais vidrado nas próprias crenças.
As pessoas atendiam ao que pedia, faziam a melhor pose, arrumavam o
cabelo, trocavam de roupa, expressavam o que sentiam naquele momento com a mais
pura sinceridade, e em menos de um minuto eram impressas e enquadradas no
porta-retrato, mais uma para a incrível coleção que já tomava conta do quarto,
paredes, mesa, chão, a própria cama, T. dormia entre as milhares de fotos
espalhadas.
Deu-se conta de que estava em cima da hora, deveria ir para o emprego que
arrumara, estava desempregado há seis meses – tinha trabalhado na segurança interna
de um supermercado, monitorando os clientes pelas câmeras. Agora trabalha em
uma boate, recepcionando e cadastrando as pessoas.
Gabriel Sant’Ana