sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O velho-de-barbas-brancas

- Eu gostaria que esta noite não acabasse como todas as noites.

Assim foi o pensamento de Marcos quando o ponteiro marcou 18h. Talvez não fosse literalmente assim; mas o teor do desejo que passava dentro de seu cabeça, que provinha das profundezas de algum ponto de sentimento existente no peito de uma criança que sempre quer que os dias que considera maravilhosos não se acabem e sejam esquecidos ao acordar do dia seguinte.

Ele foi bastante humilde ao elevar o seu pensamento aos céus, ou, como ele mesmo pensava, ao velho-de-barbas-brancas.

As maravilhas são uma forma de enxergar de forma obtusa e semicerrada os fatos cotidianos mais simplórios e banais.

No início do dia, uma alegria incomparável tomou conta de Marcos. Levantou-se da cama não como de costume, mas alegre, apesar das remelas nos olhos e uma fome desalentadora. Abraçou os pais, fez o seu próprio pão. O dia estava radiante, apesar de algumas nuvens muito cinzentas. Regou as plantinhas de sua mãe, retirou as folhas secas, adubou a terra.

Alguém chamava no portão. Marcos foi ver quem era. Um velhinho pedindo um copo d'água. Mas ele se encaixava de forma perfeita com as características que ouvia das narrativas. Um pouco encurvado, óculos grossos, roupas brancas, botas, mão tremendo, voz delicada e gostosa de se ouvir - parecida com as de locutores dos supermercados anunciando a promoção de alcatra -, sorriso sincero nos lábios, barbas longas e bem feitas. Correu rapidamente para pegar água ao velho-de-barbas-brancas. Quando retornou não estava mais do lado de fora, mas já na sua varanda.

- Senta-te aqui, meu caro. Preciso te dizer algumas palavras.

Marcos obedece. O velho-de-barbas-brancas com sua voz transcendental, canora, verdadeiro aedo recitando de cor as velhas histórias conhecidas de todos:

- Meu filhinho, te digo que as maravilhas que escutaste nas histórias antigas existem. Eu sou o mundo que ouviste nas narrativas, sou Homero, Vergílio, Dante, o Velho-do-Saco, o Lobo-Mau, Camões, Joyce, o escritor deste conto "infanto-juvenil", o narrador deste conto, todos os narradores de todas as histórias, os pensamentos mais vagos e mirabolantes que as pessoas têm quando estão acordadas ou dormindo, sou você Marcos, filho de Pedro e Júlia. Não te espante. As coisas absurdas se mascaram na racionalidade das coisas comuns e cotidianas e explicadas. Veja por exemplo, você é apenas um personagem de uma grande história de duas famílias que se juntaram, que são outra grande história de outras uniões. Eu hoje sou o que se chama Papai-Noel, uma velhíssima história que não preciso te contar porque já a sabes. Mas amanhã serei apenas um velho que será recolhido ao asilo de onde fugiu há três meses. Tu hoje és um menino que espera ansioso ganhar presentes de Natal. Mas amanhã serás apenas o mesmo Marcos que tens sempre desempenhado, mal educado, que acorda mal humorado, mimado. Isso porque o que se é hoje depende intimamente das expectativas que criamos dentro de nós mesmos. Mas de fato, a realidade nua e crua, você é ninguém, eu sou ninguém. Lembra-te de que hoje conversaste com Ninguém que se diz Papai-Noel. Agradeço este maravilhoso copo d'água. Minha garganta estava realmente seca.

Marcos ouviu atentamente o que o velho-de-barbas-brancas disse. Estava realmente espantado com que ouvira. De qualquer forma não é todo dia que se conversa com Papai-Noel.

- Agora preciso ir e falar com mais crianças que o Papai-Noel existe. Ano passado consegui ir a todas as casas da rua do seu colégio. Este ano quero chegar até Madureira. Não vou de trem nem de ônibus, perdi meu cartão de idoso. Vou a pé mesmo! É tão maravilhoso andar e não precisar de trenó nenhum! Sentir o vento tocando meu rosto, o calor queimando meu rosto... Quando chegar a noite vais desejar que o dia seguinte não chegue, porque este absurdo maravilhoso de ter conversado comigo, o verdadeiro Papai-Noel, não se deixe enganar por esses velhos gordos que se fantasiam nos shoppings, eles são falsos, tu não saberás se irá se repetir ano que vem... Já me sinto muito fraco, minhas forças estão se diluindo porque a cada dia que passa mais pessoas, mais crianças desacreditam em mim... Vê minhas mãos... Parecem sumir... Meus pés estão virando poeira... Me sinto ser apagado desta história... Escuto todas as vozes em coro dizendo "Papai Noel não existe"... Guarde contigo a verdade que te contei, pois sei que não vou durar mais um minuto aqui... Adeus...

Lágrimas escorrem dos olhos do garoto. Passaria aquele dia memorável sem contar o que lhe acontecera, temia que esquecesse de tudo. Não dormiria, resistiria ao temível Sono que domina as fontes de esquecimento.


Gabriel Sant'Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...