segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Fiat Lux

As luzes refletiam uma felicidade harmonicamente hiperbólica e escandalosa. Os passantes passavam e ficavam surpresos com tantas cores, tanta irradiação e alegria.
Vermelho, azul, amarelo, branco. Amarelo e vermelho. Azul e branco. Branco e vermelho. Vermelho e azul. Azul e amarelo. Amarelo e branco. Combinações quase eternas. Um ritmo inebriante. Chegava quase a cegar as vistas nervosas, curiosas e invejosas que passavam por ali e que, muitas vezes, paravam por cinco ou dez minutos para adorarem esse espetáculo de luz.
Além disso, colocaram também uma grande árvore de natal de uns dois metros. Iluminaram a árvore, enfeitaram com guirlandas, bonequinhos de Papai Noel, guinominhos, duendes, tudo que fosse possível e imaginável, inclusive algumas latinhas de refrigerante, tampinhas, sacos plásticos, chaves antigas, moedas.
Essa exuberância ficava na frente da casa.
Ainda não era dezembro.
Era simplesmente o prazer de ser o primeiro da rua a enfeitar o jardim da casa. O prazer de todo ano mudar as luzes, a árvore, de inventar. Alguns vizinhos dizem que é para despertar nos outros a tão velha e conhecida inveja.
Não era somente isso. Do outro lado da rua, outra casa entrou naquele combate. Mas não fantasiava a frente da casa com coisas natalinas. Fazia diferente. Enchia a frente da casa, o muro, as plantas, as árvores, o telhado, de placas de diversos tamanhos com muitos dizeres. Felicidades! Boas festas! Muita paz e saúde! Bom fim de ano! Posso tudo naquele que me fortalece! Casa da vovó. Aqui mora gente feliz! Sua inveja é o meu sucesso. Se os que passavam em frente àquela casa ficavam inebriados com tanta iluminação e beleza, os que passavam em frente a esta ficavam atentos e surpresos com tantas palavras de confiança, fé, esperança e sabedoria. Muitos inclusive anotavam nos celulares e em bloquinhos ou agendas os dizeres. Há relatos de pessoas que estavam muito tristes e que, passando e lendo aquelas frases, retomaram a alegria.
Comparando as duas casas, talvez seja ridículo enfeitar a casa com enfeites natalinos fora de época, vencendo assim a segunda casa. Mas, analisando com mais cuidado, a segunda casa não pode ser a vencedora, pois é visível no rosto do dono da casa o desejo de revanche e o almejo pelo reconhecimento dos vizinhos.
Não seria possível pensar em empate. Talvez até em um momento posterior, quando os ânimos se acalmarem.
Mas não. Alguns já informaram que passando os festejos de fim de ano, começa outra revanche – a do Carnaval. Não só enchem a frente com purpurinas, confetes, serpentinas, mas também se fantasiam. Um leitor desatento pensará que se fantasiam à noite para irem à festinha de rua. Não. Durante todo o dia ficam fantasiados. E não vá pensar que é a mesma fantasia. Se for pensar com criticidade e analisar os parágrafos acima, deduzirá que o desejo de destaque é tão forte no coração desses personagens, que compraram um número quase infinito de fantasias e adereços, para cada dia da semana, para cada momento em que saírem e entrarem em casa e de novo tornar a sair. De Clóvis ao Macaco, de Cinderela ao Frankenstein. Não eram só os conhecidos. Inventavam. De Saco de Lixo a Homem Latinha, de Reciclável a Ferro Velho. Catavam tudo quanto era resto de caixa, lata, tampinhas, roupas dentro de saco de lixo.
Alguns vizinhos quiseram fazer parte desse grupo. Procuraram os donos dessas duas casas e falaram do desejo de se tornarem membro, de formarem uma equipe. Acesso negado. Não era assim. Não era carnaval. Tudo aquilo era organizado. Mais do que isso, era questão de honra da família.
A questão dessa rivalidade entre as duas famílias começou em um evento da escola, especificamente em uma apresentação cultural. A filha da primeira casa venceu no concurso de poesia, e a filha da segunda, no concurso de dança. Os pais não gostaram e inculcaram na cabeça das filhas um ódio quase mortal e maligno. Em tudo que faziam na escola, as meninas se rivalizavam, desde o primeiro lugar na fila da cantina até as melhores notas nas disciplinas. As duas não eram da mesma turma, mas da mesma série.
Para piorar a situação, as famílias eram da mesma igreja. Se uma ia ao culto da manhã, a outra ia ao da noite. Levavam a sério a lição de que receberam a graça da abundância e da vitória e de que nada iria retirar o que os céus lhes dera, eram vitoriosos e vitoriosos deveriam ser sempre, em tudo.
Deveriam brilhar sempre, pois eram vitoriosos e não eram filhos das trevas. A passagem do arrebatamento do profeta Elias era inspiração e todos os dias a liam.
Em um dia desses, pela noite, um morador de uma casa velha no final da rua, sentindo no seu coração a mais sensível e profunda dor, resolveu pôr fim àquela rivalidade ridícula e de vencer finalmente, por completo.
No dia seguinte, o morador esperou as famílias saírem.
Ambas as casas estavam abarrotadas, entupidas de coisas variadas, daquelas de que tratamos nos parágrafos anteriores e outras que não foi possível mencionar por causa do espaço da folha e da paciência dos leitores de hoje em dia.
Havia levado consigo três garrafas de álcool e uma caixa de fósforos.

Gabriel Sant'Ana

Das orelhas

E modelou dois orifícios laterais na parte superior daquela massa de barro, a que se chama cabeça. Ainda não tinha pensado qual a serventia dessas partes adjuntas à cabeça. Não soube por que criara aquilo, já que não tinha. De onde tirara aquela forma?
Sim. Agora fazia sentido. Eles só me ouvirão, só escutarão a minha voz. Falarei e eles me atenderão. Só reconhecerão a minha voz. Estais proibidos de ouvir outra voz senão a minha, pois no momento em que virardes vossos ouvidos a outras vozes, sereis amaldiçoados.
A serpente viu que a criação das orelhas era muito boa e refletiu sobre outras possíveis serventias. Não era cabível que dois orifícios servissem unicamente para ouvir uma única voz. Isso era absurdo. Quantas coisas interessantes e fantásticas poderiam ser repassadas e recontadas? Como se daria a comunicação? Não se daria.
A mulher ouviu os argumentos da serpente. Ficou com dúvidas. Afinal, era possível ou permitida a ideia de não ficar reprimida a uma voz onissoante? Vá e conversa com teu homem.
Por que devemos ouvir apenas a Sua voz? Por que não posso falar com você, ou debatermos uma ideia? Por que não podemos nos falar? Por que você não pode me escutar? Ou eu te escutar?
Não ouviram os Seus passos, estava caminhando no jardim, pois discutiam a relação e viam a possibilidade de terem um filho no próximo verão. O que estais fazendo que não ouvistes meu chamado? Acaso virastes os ouvidos a alguma voz desconhecida? Agora compreendo essa antipatia e por que estou neste monólogo infernal. Ouvistes a voz daquele animal desgraçado, corruptor da minha criação e de minhas criaturas. Porque não escutastes minha poderosa voz, amaldiçoo vossas orelhas e que não haja compreensão entre vós. Ele lhe falará dos seus desejos mais profundos e tu o ignorarás, fingindo prestar atenção. Ela virá ao seu ouvido pedir-lhe mundos e mundos e tu dirás que daqui a pouco lhe dará. De tempos em tempos, tereis de limpar o interior de vossas orelhas, por causa da vossa desobediência.

Gabriel Sant’Ana

No sofá

No sofá branco. Eram beijos calorosos, cheios de vontade, pecaminosos. Os lábios ficaram vermelhos, o canto da boca ficou com uma pequena mordida. As mãos percorriam o corpo com velocidade e intensidade. Respiravam ofegantes. Olhos semiabertos. Sempre te quis... Maravilha, delícia...ah...ah... Lambe seu rosto, uma respiração no ouvido deixa seu corpo arrepiado. Mordisca o pescoço. Ai...ai...ah...assim não...assim não...estou toda arrepiada... Gostosinha... Mais pequenas mordidas, dessa vez na barriga. Tira-lhe a blusa, deixa o sutiã, cuidado... alguém pode chegar... Calma... fica tranquila... Toca seus seios, saboreando com as mãos. Ai...ah... Tira a calça... Ai amor, pode chegar alguém... Tira, vai... eu sei que você quer... Ai amor... Meio envergonhada, obedece. Linda... Aperta suas coxas, morde suas pernas, lambe. Estou excitada...ah... Isso meu amor... vem aqui... Ela vai. Ah... devagar, querida....
Se, Alexandre estaria muito feliz, orgulhoso de si, se sentiria o homem mais sortudo do mundo. Se. Estava com Carla há dois anos. Eram muitas as preocupações de Carla. Se era ele o homem de sua vida. Se era ele fiel a ela. Se ela deveria ir mais além. Se não iria se arrepender. Se ele não iria magoá-la. Ainda que quisesse, iria esperar pelo momento certo, embora não soubesse que momento era esse, se ele avisaria estar chegando; esperaria seu corpo lhe mostrar o momento da entrega, embora essa entrega não soubesse ainda o que fosse, ou o que significasse; seguiria os conselhos da mãe, pois todo homem era tudo igual, não valia a pena, queria era sacanear com a cara dela, queria todas, não esperasse um minuto que veria.
Mas não adiantava, por mais que fosse sincero, que fizesse cartas, poemas, sonetos, deixasse bilhetinhos, mandasse flores, que deixasse lindos recados no Facebook, que a cutucasse todos os dias. Talvez nunca adiantaria. Nunca adiantará. Talvez desistir fosse melhor, mas se desistisse, mostraria a ela que era verdade tudo o que ela pensava.
No sofá branco, na sala. São as mãos dadas. A mãe de Carla no outro sofá. 16h. Sessão da tarde. Parque dos dinossauros. A pipoca dentro do microondas.


Gabriel Sant’Ana     

Almoço

Arroz empapado
Feijão salgado
Quiabo melado
Frango queimado
Refresco aguado


Gabriel Sant’Ana e Meire Cardoso

Camisetas

                        À minha mãe

Há cinco anos atrás,
Por dez reais,
Comprei duas blusas,
Uma branca e outra preta.

Pedi a meu filho
Desenhasse uma borboleta
Para minha amiga bordar
Na branca.

Usei a preta,
Meu filho não desenhou,
Minha amiga não bordou,
E a branca guardada ficou.

Após cinco anos,
Arrumando o armário,
Achei a branca
E sem bordado vou usá-la.


Gabriel Sant’Ana

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Página 69

             Madrugada de julho. Escorriam pelo vidro da janela do quarto as gotículas de água de um chuvisco intenso. Na cabeceira, o romance, marcado na página 69.

“Entrou pela porta, cautelosamente, não podia fazer qualquer barulho, poderia acordar a velha que dormia no quarto ao lado. Aquele ronco irritante não incomodaria, não atrapalharia o que estavam esperando há uma semana.”

O quarto não era grande, mas confortável, e tinha sido limpo pela manhã. O aroma do produto de limpeza ainda estava grudado no chão de madeira, no armário, na mesinha. Algumas roupas estavam sobre uma cadeira do lado esquerdo do armário.

“Fechou a porta com o máximo de cuidado. Deu duas voltas com a chave. Tirou o casaco e a calça. Colocou-os na cadeira ao lado da cama. Como senti sua falta (em sussurros). Eu também...”

Da janela se via a Lua. Ouvia-se o ruído do vento. Faltavam poucas, não muito longas horas, para o amanhecer. Nas árvores do jardim, dois pardais tentavam se proteger daquele chuvisco. O cão estava na sala de jantar, no andar de baixo, ávido para que a casa acordasse e lhe desse o delicioso pão com pedaços de mortadela.

Seus lábios e línguas fizeram os movimentos mais discretos e sem ruídos. Seus corpos se roçaram, entrelaçaram-se, mãos e braços e pernas e sexos e bocas e cabelos e pelos e salivas e suores e odores e olhares e respiração e pensamento e desejo. Sem pressa, tocando cada mísero e finito minuto no corpo um do outro. Debaixo do lençol branco que fora de sua tia. À meia luz da Lua, que entrava pela brecha da cortina entreaberta.

Antes das cinco da manhã, vestiu-se um pouco apressadamente. Nos vemos na próxima noite? (em sussurros) Sim...estarei sempre te esperando...venha! (em sussurros  agitados) Deixei uns versos para você na página do romance sobre sua cabeceira.

Gabriel Sant'Ana

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Pela tarde

Sentado no sofá. Virei para trás e tomei um susto. Meus cabelos estavam no chão, meu rosto estava se decompondo, meus olhos... Onde estavam meus olhos? Como conseguia me enxergar sem eles?
Batiam as duas horas da tarde. Senti uma fome animal. Levantei-me, fui à geladeira. O leite, azedo, me chamou atenção. Enchi minha caneca, tomei de um gole. Peguei o pacote de pão de forma, mofado, e comi sete fatias com queijo minas. Algumas baratas roíam restos de comida no chão, pisei e coloquei dentro do liquidificador, bati com banana e aveia, a Farinha Láctea não pôde faltar.
Minha mulher chegou às seis horas. Estava no quarto, nu, dentro do edredom, o ar condicionado ligado. Não notou nenhuma diferença em mim. Não acendemos a luz. Fizemos o de costume. Sentiu uma pequena estranheza, eu estava mais agressivo.
Estava mais esfomeado. Comecei mordendo-lhe os dedos dos pés, vagarosamente, seu corpo se arrepiou. Não me segurei mais, arranquei-os. O prazer daqueles dedinhos e o sangue na minha boca. O prazer de seus gritos, seus olhos esbugalhados, sua garganta se avermelhando, suas unhas me arranhando, procurando se desenlaçar de mim.
Ela era linda, semideia. Minha beleza tinha ido àquela tarde. Naquele início de tarde, tomei um banho demorado, enxaguei minha cabeça, sem cabelo, fiz a barba no chuveiro; enxuguei-me, fui me olhar no espelho embaçado. Desgraçado! Nada havia mudado. Lembrei o que meu oftalmologista me dissera. Desgraçado! Minha visão estava perfeita. Lembrei-me da minha consulta com o urologista, semana passada. Inferno!
Ela era espetacular.
Mas fez o que nunca havia imaginado. Não sei como conseguiu. Ela sugou tudo de mim, literalmente. Foi como um feixe de luz a iluminar minha mente, veio a lembrança do dia anterior. Eu na cama, deitado, nu, o ar condicionado ligado. Ela veio, de calcinha e sutiã, vinhos, banhada num perfume enlouquecedor, cabelos soltos, molhados, olhos fatais, desejos em mente. Fizemos o de costume. Para terminar nossa noite, me fez o melhor oral que já tinha recebido. Lambeu-me furiosamente, mordeu-me ávida e delicadamente, chupou-me, engoliu-me, engasgou-se propositadamente, babou-me, lambeu-me mais vezes, gargarejou, cuspiu, engoliu, tossiu, sugou-me por completo, desgastou-me.
Tudo de mim saiu naquela rajada de sêmen na sua boca. Não percebi alguns fios de meu cabelo na cama. Só agora me dei conta. Transformou-me em algo que não o que era eu, ou que eu fazia ideia de mim mesmo. Não tinha mais testículos, ela os devorara. Só deixara o que lhe interessava.
Devorei seus dedos. Mastiguei seus braços. Arranquei seus seios, engoli. Cortei em mínimos pedaços sua vagina, joguei no chão, algumas baratas e o rato, que há meses estava debaixo da cama, começaram a comê-los. O restante do corpo estraçalhei e bati no liquidificador, com banana e aveia, leite azedo e Farinha Láctea, enchi minha caneca e tomei de um gole.
Depois fui para a varanda ler Alencar.

Gabriel Sant’Ana

Esquina

Ficou o copo.
Sobraram algumas gotas.
Desejo inmesando.


Gabriel Sant’Ana

domingo, 4 de dezembro de 2011

Reumatismo

Roupas molhadas no varal.
Sol de meio dia.
Vento seco de agosto.

Rosto suado de trabalho.
Mãos gastas de vida.
Olhos cansados de catarata.

Entre os dedos ressequidos,
A antiga colherinha com açúcar
Para adoçar o cafezinho.

Sobre a mesa, pães
Do dia anterior, requentados,
Um pedaço de queijo
E a margarina.

Três de açúcar,
Dois de queijo,
Meia de margarina.

No fogo, a panela
Com água fervente.

No balde, a calça
De molho no sabão.

No chuveiro, o neto,
Para a escola.

Na cadeira, esperando.


Gabriel Sant’Ana

sábado, 3 de dezembro de 2011

Arranjo


Nos braços
Em que te tenho
São sempre
Pequenos momentos curtos
Estilhaços de minutos

Numa viagem
Corrida
Sempre estilhaços
São de curtos minutos
Momentos pequenos

Entre freadas
E sinais vermelhos
São curtos momentos
Minutos de estilhaços
Sempre

Entre teus bocejos
E mensagens de celular
Sempre pequenos minutos
De estilhaços curtos
São momentos

Onde não posso
Te tocar
São sempre estilhaços
Momentos curtos
Nas salas
De minutos pequenos

De curtos pequenos
Estilhaços
São sempre momentos
Minutos em que tenho
Tua boca
Nos braços

São sempre pequenos momentos

São sempre
Pequenos momentos
Curtos
Estilhaços de minutos
Em que te tenho
Nos braços
Numa viagem
Corrida
Entre freadas
E sinais vermelhos
Entre teus bocejos
E mensagens de celular
Nas salas
Onde não posso
Te tocar
E ainda a luz
Para acabar
O mísero minuto
Em que tenho
Tua boca

Gabriel Sant'Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...