Muitos copos de vidro no secador da cozinha. Copos iguais, de vidro.
Os mesmos sacos de açúcar da mesma marca, os mesmos pacotes de biscoitos
dentro do armário.
Plásticos, vidros, letras grandes e miúdas, cores várias – igual.
A mesma mão que apanha os objetos do armário e os transforma em café da
manhã, almoço, jantar.
A mesma pele que se envelhece com o passar dos meses, sempre mesmos.
Pequena, era divertido com minha mãozinha, a esponja e detergente lavar
os copos, os pratos, os garfos, as colheres de sopa. Ajudava mamãe também com
as roupas. Estender no varal à luz fustigante do sol. Depois, à tardinha, tomá-las,
passar com o ferro, dobrar e guardar nas gavetas.
Eram belas aquelas pequenas mãos. Só as marcas na palma. Nada mais.
Lembro os primeiros calos nos dedos quando comecei a escrever. Antes só
ligava os pontinhos, fazia as letrinhas. Lindo desenhá-las. Minha tia me deu um
diário. Marquei suas folhas com meus pensamentos, imaginações, sonhos. Guardava
bem escondido.
Agora não escrevo uma linha sequer. Perdi aquela sensação prazerosa de
preencher o branco de mim mesma. Não há nada branco.
Branco foi o meu vestido. Eu e minha mãe costuramos. Noites e dias,
nossos dedos cosiam, dedicavam-se a uma futura brancura eterna, imaculada. Quantos
conselhos se teciam entre nós. Lembranças e promessas se embaraçavam com uma
dificuldade fácil e refazíamos o caminho.
Aquele ano. O dia, não me sai da cabeça. Talvez nunca saia.
Mas nunca foram diferentes seja aquele ano e o de outrora. Fomos nos
tornando mais velhos, evidente. Um dia se deita para se levantar logo em
seguida. Sempre igual. Às vezes chuvoso, com sol, nublado.
Mas me deito, e levanto decaída, ressecada. Há tempo não sou deitada. E fui
me secando, aos poucos. Meus lábios ficaram grudados.
Este leite já esfriou. Vou jogar fora depois.
Agora. Vou jogá-lo agora. Tanta economia para nada. Economizar, reduzir,
segurar. Para quê? De que adiantou? Nada melhorava. Ia piorando. Sempre. Mesmo que
me esforçasse. Mesmo que me dedicasse. Mesmo desgastando estas mãos, este braço,
estas pernas, estas coxas. Esvaindo meu corpo para casa, filhos, obrigações,
pratos limpos, panelas brilhando, roupas limpas, dobradas, passadas, chão sem
sujeira, poeira, móveis arrumados, estantes organizadas, quartos modelo, filhos
educados, contas pagas em dia, comida quente na hora, pão francês saído do
forno da padaria, lanches aos finais de semana, sobremesas deliciosas, nunca as
mesmas porque enjoava.
Vazia a casa. Vazio armário, gavetas. Daqui alguns minutos voltam da
escola. O rádio continua na mesma estação. Abaixei o volume, estava
incomodando. Mas aqueles copos. Limpos. Algumas arranhaduras pelo constante
uso. Alguns já quebrei.
Outros foram levados. Como muitos objetos, roupas, sapatos. Algumas coisas
ainda estão ou deixou que ficassem. Retratos rasgados, ou os levou. Alguns ficaram
na minha gaveta. Os porta-retratos ficaram vazios, estão cheios de pó. A casa
está cheia de pó. Estão fazendo uma obra do outro lado da rua. Inferno. Apartamentos.
Futuros vizinhos. Novas famílias na rua. Ou não.
Mas essa tarde quis ouvir um CD que me dera de aniversário. Gosto muito
daquelas músicas, meu cantor preferido. Meu CD. Não estava na estante. Rodei todos
os cantos à procura. Ficaram alguns. Menos esse. Disse que levaria os seus CDs. Carregou o meu de
propósito. Foi com o seu dinheiro.
O leite indo, e ainda um resto branco no copo.
Gabriel Sant’Ana