sábado, 30 de junho de 2012

Copo de vidro


Muitos copos de vidro no secador da cozinha. Copos iguais, de vidro.
Os mesmos sacos de açúcar da mesma marca, os mesmos pacotes de biscoitos dentro do armário.
Plásticos, vidros, letras grandes e miúdas, cores várias – igual.
A mesma mão que apanha os objetos do armário e os transforma em café da manhã, almoço, jantar.
A mesma pele que se envelhece com o passar dos meses, sempre mesmos.


Pequena, era divertido com minha mãozinha, a esponja e detergente lavar os copos, os pratos, os garfos, as colheres de sopa. Ajudava mamãe também com as roupas. Estender no varal à luz fustigante do sol. Depois, à tardinha, tomá-las, passar com o ferro, dobrar e guardar nas gavetas.
Eram belas aquelas pequenas mãos. Só as marcas na palma. Nada mais.
Lembro os primeiros calos nos dedos quando comecei a escrever. Antes só ligava os pontinhos, fazia as letrinhas. Lindo desenhá-las. Minha tia me deu um diário. Marquei suas folhas com meus pensamentos, imaginações, sonhos. Guardava bem escondido.
Agora não escrevo uma linha sequer. Perdi aquela sensação prazerosa de preencher o branco de mim mesma. Não há nada branco.
Branco foi o meu vestido. Eu e minha mãe costuramos. Noites e dias, nossos dedos cosiam, dedicavam-se a uma futura brancura eterna, imaculada. Quantos conselhos se teciam entre nós. Lembranças e promessas se embaraçavam com uma dificuldade fácil e refazíamos o caminho.
Aquele ano. O dia, não me sai da cabeça. Talvez nunca saia.
Mas nunca foram diferentes seja aquele ano e o de outrora. Fomos nos tornando mais velhos, evidente. Um dia se deita para se levantar logo em seguida. Sempre igual. Às vezes chuvoso, com sol, nublado.
Mas me deito, e levanto decaída, ressecada. Há tempo não sou deitada. E fui me secando, aos poucos. Meus lábios ficaram grudados.
Este leite já esfriou. Vou jogar fora depois.


Agora. Vou jogá-lo agora. Tanta economia para nada. Economizar, reduzir, segurar. Para quê? De que adiantou? Nada melhorava. Ia piorando. Sempre. Mesmo que me esforçasse. Mesmo que me dedicasse. Mesmo desgastando estas mãos, este braço, estas pernas, estas coxas. Esvaindo meu corpo para casa, filhos, obrigações, pratos limpos, panelas brilhando, roupas limpas, dobradas, passadas, chão sem sujeira, poeira, móveis arrumados, estantes organizadas, quartos modelo, filhos educados, contas pagas em dia, comida quente na hora, pão francês saído do forno da padaria, lanches aos finais de semana, sobremesas deliciosas, nunca as mesmas porque enjoava.
Vazia a casa. Vazio armário, gavetas. Daqui alguns minutos voltam da escola. O rádio continua na mesma estação. Abaixei o volume, estava incomodando. Mas aqueles copos. Limpos. Algumas arranhaduras pelo constante uso. Alguns já quebrei.
Outros foram levados. Como muitos objetos, roupas, sapatos. Algumas coisas ainda estão ou deixou que ficassem. Retratos rasgados, ou os levou. Alguns ficaram na minha gaveta. Os porta-retratos ficaram vazios, estão cheios de pó. A casa está cheia de pó. Estão fazendo uma obra do outro lado da rua. Inferno. Apartamentos. Futuros vizinhos. Novas famílias na rua. Ou não.
Mas essa tarde quis ouvir um CD que me dera de aniversário. Gosto muito daquelas músicas, meu cantor preferido. Meu CD. Não estava na estante. Rodei todos os cantos à procura. Ficaram alguns. Menos esse. Disse que levaria os seus CDs. Carregou o meu de propósito. Foi com o seu dinheiro.


O leite indo, e ainda um resto branco no copo.


Gabriel Sant’Ana

domingo, 10 de junho de 2012

Na esquina da padaria


I

Dizia assim o bilhete sobre a mesa da cozinha: me encontre na esquina da padaria às 14h. Não se atrase.
Nenhuma assinatura.
Alguns minutos antes dispensara a doméstica, não era necessário fazer o almoço, iria se encontrar com uns amigos no restaurante. Fora tomar banho, se arrumar para sair, e quando foi beber um copo d’água encontra o bilhete.
Ninguém além de Marilda estivera em casa.
Pois bem, vamos à esquina, não nos atrasemos.
Apertou o passo para de fato não se atrasar. Não respondeu à vizinha que lhe dava boa tarde, não acariciou o gato, sequer fizera o sinal da cruz ao sair de casa. Deixou destrancada a porta.
A padaria ficava distante dali, era necessário tomar um ônibus. Demorou mais de dez minutos. E ainda estava lotado. Iria em pé, amarrotaria a roupa, se encostaria em pessoas imundas, levaria esbarrões que desfiariam sua blusa. Não se importava com nada. Estaria na esquina. Faltavam ainda trinta minutos.
Apesar do engarrafamento, conseguiu.
Não havia ninguém na esquina. Esperaria o tempo que fosse.
Agora lembramos que o bilhete não era recente. Quanta infelicidade. Havia escrito ontem para Marilda, pois queria que me ajudasse com as compras para a casa.
Primeiro surgiu Marilda à minha frente depois de eu ter acordado de um pesadelo. Ela foi tão solícita que lhe prometi nunca mais deixá-la só, ela seria para sempre minha. Pagaria caro pelos serviços. Ela não me respondeu, mas seus olhinhos. Eu ainda estava na casa de um tio, passando minhas férias. Quando voltasse, pensaria em como seria minha casa.
Ainda não tenho muita ideia de como é a casa. É algo vago, ainda há tempo para pensar nisso depois.
Mas veio, então, a ideia vaga de casa: um espaço com quarto, sala, cozinha, banheiro. E em seguida, como que por consequência, o lugar onde se localiza, também vaga, algo como um bairro, talvez um subúrbio.
Já existia Marilda, a doméstica. Veio surgindo informe esse alguém para talvez completar alguma coisa, que ainda não sei o que é ou será.
Infelizmente, ele surgiu no dia seguinte à minha ida ao supermercado. Infelizmente porque o deixei livre, e ele acabou por descuido lendo o bilhete.
Deixei-me também livre de observar e controlar o que se sucedia.
Agora está ele ali na esquina da padaria esperando alguém que talvez nunca virá.
Vou deixá-lo para pensar melhor no que farei.

Gabriel Sant’Ana

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Fotografias


Traços genéricos

Desde pequeno, T. era aficionado por fotos, retratos, álbuns.
Em todos os cantos da casa havia alguma foto. Sempre colocava dentro de um mesmo tipo de porta-retrato, que comprava numa lojinha próxima de casa.
Eram sempre fotos de si mesmo. Nunca com um amigo, com parentes, ou com mulheres.
Tais tipos de foto ficavam dentro do quarto. Todas viradas para sua cama, que ficava no centro.
As ocasiões em que tirava fotos eram as mais diversas: encontros com os amigos no shopping, jantares, festas. Nunca sorria, não mostrava nenhuma expressão, seja de tristeza ou de felicidade.


Foco

Dificultoso saber quando dizia o que realmente pensava, ou melhor, dificultoso era fazer com que T. dissesse alguma coisa.
Uma vez filosofara expressando que as palavras devem ser ditas quando nenhum outro modo de expressão consegue passar a ideia que se quer transmitir, por isso preferia fotografar o que acontecia, as pessoas, as situações, e sem ninguém se dar conta de que eram capturadas pela lente, pois quando há consciência por parte do objeto, perde-se a essência do fugaz.
Percebera-se capaz de capturar a alma das pessoas, dos seres, do ambiente capturando-lhes a imagem, quando no aniversário de um amigo fotografando o momento dos parabéns uma fraqueza tomou conta das pessoas e a vela do bolo foi se apagando aos poucos. As vozes foram se tornando mais fracas e roucas. O aniversariante desmaiou e foi levado para o hospital, mas acabou não resistindo, teve uma parada cardíaca.
Apesar de triste, tal situação deixara T. feliz. Como nunca em toda aquela vida em preto-e-branco tivera igual.
Precisava de mais fotos. Necessitava de mais ambientes, das mais variadas energias.
Fotografava enterros, festas de crianças, pessoas no CTI, mulheres dando à luz, piqueniques nos fins de semana, casamentos, bodas de ouro, separações, jogos de futebol, espetáculos, show do Roberto Carlos, ambulantes vendendo seus produtos, crianças caindo, suicídios, assassinatos, roubos, incursão de policiais em favelas, missas, procissões, carnaval, término de namoro, prato quebrando, moeda caindo da mão do trocador, trem descarrilando, chuva torrencial, pombos voando.
Instalara na sua casa câmeras.
Mas ainda não estava satisfeito. Demorou a entender que quanto mais emoção tivesse ao fotografar as coisas, menos teria do essencial, deveria ser imparcial, frio como a máquina fotográfica.
Ficou com receio no início. Não saberia se seria o ideal a ser feito. Mas deveria tentar.
Mais de vinte vezes tirou foto de si mesmo.
Quanto mais se fotografava, menos sentia a pulsação do sangue, menos precisava respirar, sua pele se esfriava rapidamente, empalidecia. Conseguiu por completo esvaziar as sensações, o pulsar dos sentimentos dentro de si, tudo capturado e colado nas fotos.
Sentia-se livre, sentia a vida menos pesada, porque menos sentia, menos se preocupava em agradar, se enfurecer, se apaixonar, amar, odiar, gostar, se compadecer, era tudo vão, desnecessário, supérfluo, sentia a vida em si, as coisas através delas mesmas, tudo comum, igual a si mesmo, as pessoas eram aquilo que sempre suspeitara. Conseguia ver claramente qualquer situação, problema, pessoa, objeto. Seus amigos, se é que se pode dizer assim, confiavam nele como se estivessem conversando consigo mesmos.
T. sabia aconselhá-los do melhor a ser feito: endireite a gravata, não se encurve tanto, não pisque, olhe fixo, deixe que o que você sente se torne expresso e capturável, quero guardar como lembrança esse dia. Saía sem se lembrar do que dissera antes, sequer de quem era. Assim era melhor, quanto menos soubesse, menos se lembrasse, menos se reconhecesse, certamente perfeito.
Descarregava as fotos no computador e as imprimia em seguida, e a pessoa ao seu lado.
À medida que a foto ia saindo impressa, a pessoa ia perdendo a coloração da pele, do cabelo, a respiração, sua roupa ia se tornando neblina, ia se misturando à folha que saía da impressora com a foto. Deixava alguns minutos para secar a folha e enquadrava no porta-retrato vagabundo que tinha no armário, aos milhares, não era prático ter de comprar toda hora que tivesse alguém para fotografar.
Já tinha mais de cem fotos em toda a casa.
As fotos das pessoas ficavam no seu quarto. Todas as noites, olhava para elas, sentia-se revigorado após um dia cansativo. Essas imagens eram realísticas, vivas, mesmo não possuindo nada dentro de si, sentia uma satisfação egoísta de autorrealização, mas sem nenhuma agitação interna, sem um riso no canto da boca, ou tremores de alegria, uma satisfação estática autocontemplativa.


Dispersão

Conversando no bate-papo, teve a brilhante ideia. Comprou uma webcam.
Tinha milhares de pessoas adicionadas no Facebook e no MSN. Assim era mais econômico e prático adquirir e capturar cada vez mais um número quase infinito.
Aceitavam os pedidos de amizade que fazia. Aceitavam conversar pela webcam. Apesar de ter milhares de fotos de si mesmo, não colocava uma sequer, mas uma imagem de um boneco de fantoche de madeira. Quando estava a webcam ligada, colocava uma máscara.
Seus tipos preferidos eram mulheres, fanáticos por futebol, pedófilos, crianças, políticos, cantores, artistas, idosos, religiosos, neonazistas, todo e qualquer tipo que fosse o mais vidrado nas próprias crenças.
As pessoas atendiam ao que pedia, faziam a melhor pose, arrumavam o cabelo, trocavam de roupa, expressavam o que sentiam naquele momento com a mais pura sinceridade, e em menos de um minuto eram impressas e enquadradas no porta-retrato, mais uma para a incrível coleção que já tomava conta do quarto, paredes, mesa, chão, a própria cama, T. dormia entre as milhares de fotos espalhadas.
Deu-se conta de que estava em cima da hora, deveria ir para o emprego que arrumara, estava desempregado há seis meses – tinha trabalhado na segurança interna de um supermercado, monitorando os clientes pelas câmeras. Agora trabalha em uma boate, recepcionando e cadastrando as pessoas.



Gabriel Sant’Ana

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Palhacinho


Eram batidas de um tambor, ritmadas, sem cessar, vindo de dentro, explodindo sempre em formas diferentes, mas sempre nos mesmos instantes, minutos, contados à risca pelo relógio da cozinha ou do quarto, até do pulso caso estivessem próximos.
Ora batia com a cabeça na parede, no berço, no colo de alguém, no chão. Toda marcada, não adiantavam as pomadas, os gelos, as ataduras. Eram muito fortes as batidas. Enlouquecedoramente irritante.
 Ora tossia compulsivamente, ritmado, mecânico, irritantemente neurótico para alguém de tão pouca idade.
Ainda não haviam percebido, para infortúnio familiar, que a escuridão visual da criança aumentava assustadoramente, em ritmo lento, progressivo e fatal.
A temporada do circo não estava dando resultado favorável à família. Estavam há duas semanas naquele pequeno bairro suburbano medíocre, em uma pracinha. Conseguiam com um padeiro da localidade o pouco para sustento próprio, mas não por eles mesmos, mas por causa dessa criança, que já chamava a atenção dos moradores, inspirando compaixão a todos que a viam no colo da mãe, cartomante que dava consultas por R$ 2,00, ou nos braços do pai, palhaço de rosto tristonho, que sempre levava ovos na cara pelo público.
Todas as noites, pintavam a infeliz criança de palhacinho.
Dia desses, alguém fora se consultar com a cartomante e lhe perguntou como as cartas não revelavam nada para aquela criança, nenhuma esperança que fosse. A mulher lhe responde que nunca deitara as cartas ao filho. Era expressamente proibido realizar tal ato; sua mãe fizera isso uma vez, e dois meses depois morrera ao atravessar a rua para comprar o pão, um caminhão viera não se sabe de onde. Se deitasse as cartas, o filho perderia os pais, ou um deles aos poucos.


O infeliz tinha uma dessas síndromes nervosas para a qual dizem não ter cura, além da cegueira, como vimos acima. Interessante notarmos que, mesmo dando alegria aos moradores daquele recanto medíocre que era aquele bairro, a família de circenses não tinha uma mísera felicidade. Talvez quisemos dar à história um ambiente triste, o que faz com que alguns se solidarizem com o personagem principal – a infortunada criança, que sequer lhe pusemos um nome.
Mas este relato é verdadeiro porque fomos ao circo num dia que não nos lembramos, pois tínhamos acabado de sair de uma reunião de condomínio.
Fomos à tenda da cartomante. Graciosa, apesar da expressão pesada de anos repetidos de miséria e sofrimento. Seu marido, um homem sem expressão, sem sentimentos, sem muitas palavras. Segundo a mulher, quando tiveram aquele filho, o homem emudeceu. Parece que ele arrancou com a faca que cortava o pão a própria língua.
Fiz uma proposta à mulher. As cartas eram a meu favor.
Naquela noite, pancadas surdas na mulher que há anos não sabia mais. Seu marido na tenda ao lado ouvia com a respiração ofegante. Mas ele sabia que eu mudaria a vida daquela desgraçada criança, além de dar a eles um apartamento.
No dia seguinte, joguei na loteria. Duas semanas veio o resultado, ganhei, como disseram as cartas, como previram as tosses infernais do menino, para minha felicidade e a deles.


Dei o apartamento para o casal. Na verdade, para o mudo. A cartomante ficaria no circo comigo. O circo agora era meu. Fora do avô dele, mas não tinha palavra que pudesse dizer para me contrariar. Queria se livrar do filho, nunca desejou ter tido filho algum com a mulher – que fosse para longe.


Não mais seria palhacinho. Não seria figura secundária naquele espetáculo.
Agora é o próprio espetáculo para divertimento do grande público que vê alegre e contente, como algo maravilhoso, uma criança cega e com síndrome nervosa fazer malabarismos, tocar violão, fazer cambalhota e cantar uma música gutural ininteligível aos ouvidos simplórios.


Gabriel Sant’Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...