Porra, pegaram minha cadeira. Dizia-se começar a madrugada. Olha
próximo a si. Tem alguém usando essa cadeira? Não. Retira a mochila e pega a
cadeira. Bebia cerveja de canudinho no copo de vidro. Fosse um travesti vampiro
saído de um conto suburbano.
Não era Copacabana. Não fosse lugar algum. Dois rapazes se
divertindo ao violino, gente na rua dançando ao som de música alguma, um
marombado rebolando ao chão e um viciado catador de lixo sambando, sorriso nos
lábios, chinelo, balançando o saco plástico cheio de latinhas amassadas.
Cervejas, cachaças. Mais diversos visuais, ou estilo.
Desfile alcoólico e sexual de qualquer coisa.
Dois cães vira-latas servindo e brincando de tapas e
empurrões. Um deles tinha chapéu de cowboy e um sorriso simpático. Mais alguma
coisa? Mais uma cerveja? Não, só isso aqui mesmo.
Ação alguma. Porque é impossível.
No meio da rua, parado, braços cruzados, pescoço curvado,
sorriso estranho, mochila nas costas, latinha em uma das mãos. Observando a
cena.
Minutos atrás estava em casa arrumando-se para a madrugada
que lhe prometia. Olhava seu armário e escolhia o que vestir. As mesmas roupas
que usava sempre em qualquer ocasião. O que distinguiria seria a mochila. Desce
as escadas. Bate na porta da vizinha. O marido estava no trabalho. Poderia entrar?
Senta-se no sofá, pede uma xícara de café. Era da manhã, servia?
Vai para o quarto. Deitar? Não é um crime. Olhos tentados,
corpo desejoso. Por fim, elimina-se a razão. Vira-se para o lado, mochila no
chão. O quê? Uma faca. Fecha a mochila, veste-se, bebe um copo de água, tranca
a porta e atira-se na madrugada.
Para no meio da rua, cruza os braços, encurva a cabeça. Encaminha-se
a um bar. Compra uma latinha de cerveja. Volta para a rua. Fica observando.
Passam carros. Passam pessoas. Continua parado no meio da
rua, observando, sorriso no canto da boca, mochila nas costas.
O travesti vampiro, de uns dois metros, salto alto, roupas
brilhantes, sentado numa cadeira, bebe sua cerveja de canudinho, invejando as
jovens que se ofereciam aos amigos, pensando em qualquer coisa, não pensasse em
nada, se fosse um ser, esperando algum interessado em seus anos de experiência
prostituída. Levanta para ir a um banheiro.
Sai de sua observância e senta na cadeira. Era meio da
madrugada. Porra, pegaram minha cadeira; tem alguém sentado aí?
Pega a cadeira e coloca na mesma mesa em que estava. Posso? As
mãos dele estavam tremendo, seu sorriso extinguira-se.
- Durante quinze anos nunca mais conversei com ninguém,
perdi todos os meus amigos, não me casei, não tenho namorada, apenas
relacionamentos rápidos.
- O que você gostaria que eu fizesse?
- Apenas me escutasse. Minha vida tem se passado em levar
esta mochila para todos os lugares. Para lugar nenhum.
- E o que tem nessa mochila?
- Cabeças de pessoas que amei, sonhos, minhas esperanças
aniquiladas e fotos de quando era criança.
- Você é artista?
- Ainda não. Mas posso lhe mostrar minha arte. E você é o
quê?
- Sou um personagem de um conto suburbano, poucos o leram,
ainda não foi lançado em livro. Tenho guardado meu dinheiro para publicar o
livro. Tenho anos de experiência. Essa moda de filmes de vampiro acabou com a
minha vida, porque todos se acham vampiros, todos se encantam com essas
historinhas. E não acreditam quando falo que sou um vampiro travesti...
- Quero muito expor minha obra a você, mas deve me jurar que
não fará nenhum mal a mim.
- Tudo bem. Já me cansei da vida. Já me cansei de estar em
folhas que ninguém lê e que sempre são alteradas.
- Entendo.
Levantam-se. Vão para um beco próximo de onde estavam.
- Eis minha obra.
Abre a mochila e rolam dali cabeças de sete mulheres.
- Essas são as cabeças de sete demônios. Uma era viciada em
drogas, outra era atendente de telemarketing, aquela era uma garçonete
displicente, aquilo traía o marido, ali uma prostituta moralista que não fazia
anal, aquela transava com o padre da própria paróquia, e a última fez aborto. Meu
número é o oito e preciso de você para terminar a obra. Sua estranheza é
repulsiva e me incomoda. Fique de joelhos!
Abre a calça. O vampiro travesti faz o que deve. Não romperia
o juramento. Pega a faca da mochila. Bebe o sangue daquele esquisito personagem.
Completara a obra. Põe fogo no corpo. Só existirá a cabeça na mochila, somente
uma lembrança.
Passos lentos. Volta à rua. Para. Compra uma latinha de
cerveja. Observa dois rapazes tocando violino. Encurva a cabeça, sorri. Fica no
meio da rua. Sente a vertigem e a felicidade do término de uma obra rigorosa e
demorada.
Dois cães vira-latas servem bebidas e se divertem com
implicâncias mútuas. Assobiam quando passa uma deliciosa mulher. Gargalham. Já estava
na hora de um deles voltar para casa, terminara o horário de serviço.
Uma catadora de lixo faz pose para a foto, fosse um trabalho
de sociologia ou artes para a faculdade.
Quase cinco horas da manhã.
Gabriel Sant’Ana