segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Versículos perdidos do evangelho segundo Lucas, capítulo 2


35 b E Simeão virou-se e lhe disse: 36 Este teu filho será causa de muita dor e sofrimento. 37 Não será uma espada a ferir-te o peito. 38 Quando te lhe virares as costas, do céu atingi-lo-á impiedoso projétil e, como a leoa que carrega o filhote na boca para levá-lo à margem do rio, 39 assim tu levarás o corpo de teu filho à tumba 40 e ali tu sentarás e chorarás o dia em que ambos vieram ao mundo, 41 pois sabias que não se vive sem experimentar a dor da perda de um filho. 42 Mas não te desespere, chegará o dia em que não mais precisarás recordar, 43 pois como o sol se levanta no oriente e se põe no ocidente, 44 assim também teus olhos hão de nunca mais ver a luz.


Gabriel Sant'Ana


Senhora da Piedade de Guadalupe


Domingo. Comunidade festejando mais uma vitória do time ao som do pagode, muito churrasco, cerveja, refrigerante para as crianças. Pula-pula, pelada no meio da rua. Noite refrescante. Lua e estrelas. Céu limpo. Namorados se beijavam e se prometiam uma vida melhor, um apartamento na Barra ou em Vila Isabel.
Foi o momento de levar o filhinho de um ano para casa.









Mas quem é? Não tem identidade nem certidão de nascimento. Só existe de boca-em-boca. Só existe porque está no chão com a cabeça estourada pelo tiro de fuzil. Só existe porque o pessoal a conhece de tanto que ela passava todos os dias indo para o colégio de mãos dadas com a mãe. Só existe porque saiu hoje no jornal.









Mais uma nossa senhora da piedade chora seu filho nos braços. Mais de uma lágrima rola de seus olhos, sua garganta está ressecada de angústia e desgraça. Multidão indignada, aflita, senhoras cardíacas desmaiam. Alguém avise o pai.









Terá o corpo enterrado quando os pais resolverem a documentação.



Gabriel Sant’Ana

sábado, 18 de agosto de 2012

Quinta-feira na Lapa Ou Fim do vampiro travesti


Porra, pegaram minha cadeira. Dizia-se começar a madrugada. Olha próximo a si. Tem alguém usando essa cadeira? Não. Retira a mochila e pega a cadeira. Bebia cerveja de canudinho no copo de vidro. Fosse um travesti vampiro saído de um conto suburbano.

Não era Copacabana. Não fosse lugar algum. Dois rapazes se divertindo ao violino, gente na rua dançando ao som de música alguma, um marombado rebolando ao chão e um viciado catador de lixo sambando, sorriso nos lábios, chinelo, balançando o saco plástico cheio de latinhas amassadas.

Cervejas, cachaças. Mais diversos visuais, ou estilo.

Desfile alcoólico e sexual de qualquer coisa.

Dois cães vira-latas servindo e brincando de tapas e empurrões. Um deles tinha chapéu de cowboy e um sorriso simpático. Mais alguma coisa? Mais uma cerveja? Não, só isso aqui mesmo.

Ação alguma. Porque é impossível.

No meio da rua, parado, braços cruzados, pescoço curvado, sorriso estranho, mochila nas costas, latinha em uma das mãos. Observando a cena.

Minutos atrás estava em casa arrumando-se para a madrugada que lhe prometia. Olhava seu armário e escolhia o que vestir. As mesmas roupas que usava sempre em qualquer ocasião. O que distinguiria seria a mochila. Desce as escadas. Bate na porta da vizinha. O marido estava no trabalho. Poderia entrar? Senta-se no sofá, pede uma xícara de café. Era da manhã, servia?

Vai para o quarto. Deitar? Não é um crime. Olhos tentados, corpo desejoso. Por fim, elimina-se a razão. Vira-se para o lado, mochila no chão. O quê? Uma faca. Fecha a mochila, veste-se, bebe um copo de água, tranca a porta e atira-se na madrugada.

Para no meio da rua, cruza os braços, encurva a cabeça. Encaminha-se a um bar. Compra uma latinha de cerveja. Volta para a rua. Fica observando.

Passam carros. Passam pessoas. Continua parado no meio da rua, observando, sorriso no canto da boca, mochila nas costas.

O travesti vampiro, de uns dois metros, salto alto, roupas brilhantes, sentado numa cadeira, bebe sua cerveja de canudinho, invejando as jovens que se ofereciam aos amigos, pensando em qualquer coisa, não pensasse em nada, se fosse um ser, esperando algum interessado em seus anos de experiência prostituída. Levanta para ir a um banheiro.

Sai de sua observância e senta na cadeira. Era meio da madrugada. Porra, pegaram minha cadeira; tem alguém sentado aí?

Pega a cadeira e coloca na mesma mesa em que estava. Posso? As mãos dele estavam tremendo, seu sorriso extinguira-se.

- Durante quinze anos nunca mais conversei com ninguém, perdi todos os meus amigos, não me casei, não tenho namorada, apenas relacionamentos rápidos.

- O que você gostaria que eu fizesse?

- Apenas me escutasse. Minha vida tem se passado em levar esta mochila para todos os lugares. Para lugar nenhum.

- E o que tem nessa mochila?

- Cabeças de pessoas que amei, sonhos, minhas esperanças aniquiladas e fotos de quando era criança.

- Você é artista?

- Ainda não. Mas posso lhe mostrar minha arte. E você é o quê?

- Sou um personagem de um conto suburbano, poucos o leram, ainda não foi lançado em livro. Tenho guardado meu dinheiro para publicar o livro. Tenho anos de experiência. Essa moda de filmes de vampiro acabou com a minha vida, porque todos se acham vampiros, todos se encantam com essas historinhas. E não acreditam quando falo que sou um vampiro travesti...

- Quero muito expor minha obra a você, mas deve me jurar que não fará nenhum mal a mim.

- Tudo bem. Já me cansei da vida. Já me cansei de estar em folhas que ninguém lê e que sempre são alteradas.

- Entendo.

Levantam-se. Vão para um beco próximo de onde estavam.

- Eis minha obra.

Abre a mochila e rolam dali cabeças de sete mulheres.

- Essas são as cabeças de sete demônios. Uma era viciada em drogas, outra era atendente de telemarketing, aquela era uma garçonete displicente, aquilo traía o marido, ali uma prostituta moralista que não fazia anal, aquela transava com o padre da própria paróquia, e a última fez aborto. Meu número é o oito e preciso de você para terminar a obra. Sua estranheza é repulsiva e me incomoda. Fique de joelhos!

Abre a calça. O vampiro travesti faz o que deve. Não romperia o juramento. Pega a faca da mochila. Bebe o sangue daquele esquisito personagem. Completara a obra. Põe fogo no corpo. Só existirá a cabeça na mochila, somente uma lembrança.

Passos lentos. Volta à rua. Para. Compra uma latinha de cerveja. Observa dois rapazes tocando violino. Encurva a cabeça, sorri. Fica no meio da rua. Sente a vertigem e a felicidade do término de uma obra rigorosa e demorada.

Dois cães vira-latas servem bebidas e se divertem com implicâncias mútuas. Assobiam quando passa uma deliciosa mulher. Gargalham. Já estava na hora de um deles voltar para casa, terminara o horário de serviço.

Uma catadora de lixo faz pose para a foto, fosse um trabalho de sociologia ou artes para a faculdade.

Quase cinco horas da manhã.

Gabriel Sant’Ana

sábado, 11 de agosto de 2012

Banho de Odisseu


Apenas o que é necessário

Cumpriria factualmente

Sem dúvidas e temor



Apesar de o coração



Apesar de as lembranças



Feito magnífico de linhos puros
Bordados de ouro
Bacia de água de fino odor
Taças refinadas

Argênteas taças de licores

Delicadas servas responsáveis
Atentas às ordens recebidas

Dispostas ordenadamente
Três

Braços postos ao serviço

Pernas bem treinadas

Olhos inflexíveis


Óleos manuseiam
No heroico corpo
Desgastado por errares
No mar infindos

Vigoroso viril

Contornam a forma
De líquido puro

Sujeiras se dissipando

Cansaço se diluindo por
Seis leves oleosas



Animicorpórea ablução


Rito antigo


Lata refeição após

Carnes várias

Diversas bebidas




Coito prazeroso

Milênios praticado igual
Ela sob ele
Ele sobre ela

Deitados sobrepostos

Variações do ato

A
Trás
Ante
Contra
Após

Noites e mais noites vinte
Deitaram-se entrelaçados

Onde só restam páginas amareladas



Gabriel Sant'Ana

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Minutos


Mais uma noite, mais uma história para dormir.

De costume, o filho deitado, enrolado no cobertor, olhinhos ávidos por mais uma ficção e ao mesmo tempo sonolentos e semiabertos.

Sentado ao lado, mente atolada de compromissos e responsabilidades, contas para pagar, mais contas que ainda fará, a mulher para acariciar depois. Já de pijama também. Barriga cheia da janta. Estômago sobrecarregado com bife de alcatra bem-passado, arroz, feijão e farofa, não faltou o delicioso suco de maracujá, de uma marca barata. Mais que satisfeito. Solta alguns arrotos, o filho sempre ri – não foi diferente.

Não foi diferente a história que contou. Sempre o mesmo enredo, mesmos personagens, mas nunca se chega ao fim.

- Que tanto você faz aí nesse quarto? Vem logo!

Não dava ouvidos aos clamores da mulher. E começava sua encantadora história. Estava André vagando pela rua à noite e viu um brilho muito forte que parecia vir em sua direção. Ele era muito curioso e esperou o brilho. Não era um brilho, mas um grande ser, com asas, uma espada, parecia um anjo. E o anjo disse para André que, quando ele fosse adulto, ele teria um filho que seria o maior orgulho da sua vida. Depois disso, o anjo sumiu e André voltou para casa feliz e um pouco assustado pela aparição de um ser tão iluminado e fantástico. Agora durma e amanhã continuaremos.

Deitou ao lado da mulher e se amaram como todas as noites. Após o amor, cada um se vira para seu canto para sonharem e aproveitarem míseros minutos de torpor e descanso e daqui a mais poucos minutos serem despertados pelo despertador do celular com uma musiquinha irritante, própria para isso.

O dia é o mesmo para todos.

Chega a noite. Após o jantar, escova os dentes e vai ao quarto.

- Vê se não demora! Quero terminar mais cedo essa noite, ontem fiquei arrasada, não consegui nem acordar direito.

Está calor e o filho não está coberto, está com um short e camiseta. Olhinhos semiabertos, ansioso pela continuação da história, pelo fim. Senta-se ao lado, começa a narrar. André caminhava na praia, era fim de semana. Reparou que algo na água se mexia, mas não era um peixe ou tubarão. Era muito curioso e se jogou ao mar. Nadou, nadou, nadou. Era algo como um homem-peixe. Muito estranho. E esse homem-peixe levou André para o fundo do mar para conhecer uma pessoa.

Não fizeram amor esta noite.


Gabriel Sant’Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...