sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Desengano de Pierrô

Com o lápis de olho, dava seu último retoque na maquiagem. Borrifou perfume no pescoço, nos braços, em toda a roupa. Ficou se admirando no espelho. Teria de ser hoje que conseguiria o seu amor, a sua atenção. Mesmo que não fosse o melhor pierrô, ela lhe daria nem que fosse um sorriso e uma flor.
Encaminha-se para a casa de um colega do teatro, onde acontecerá uma festinha de carnaval.
Da calçada, avista sua Colombina chegando. Para. Fica olhando sua beleza, suas roupas, seu cabelo, seus lábios vermelhos. Espera-a entrar na casa, para ir em seguida.
Entra na casa. A sala está repleta de espelhos e velas. O som do rock preenche cada espaço da casa. As pessoas vão chegando, vestidas das mais diferentes e sensuais fantasias. Busca Colombina com seus olhos, mas não consegue encontrá-la.
- Olá, Pierrô! Como vai, meu parceiro?
- Tudo bem! Que fantasia é a sua?
- Não sei ainda... Peguei tudo quanto era trapo velho lá em casa e coloquei...
- Então você é o Trapo!
- Gostei desse nome! Você sempre com sua criatividade. E aí? Alguma mulher? Namorada? Amante?
- Nada, Trapo...
- Que isso!? Logo você! O famoso e mais querido Pierrô do teatro! Seu olhar e seus traços não têm como não atrair uma mulher...
- O problema de uma ideia fixa...
- Entendo como é...
Uma roda de amigos bate palmas e grita. Todos se voltam para o pequeno grupo.
- Eu chamo para esta sala, a ilustre, a maravilhosa, a divina Colombina!
E pela porta da sala entra Colombina. Muitos aplausos, gritos, assovios.
- Nossa querida Colombina irá apresentar uma cena! De uma peça que ainda iremos pôr em cartaz... É apenas uma mostra, queridos! Esta cena se chama: “Impossível ter-me em suas mãos”.
Abrem espaço para a cena. Além de Colombina, um homem entra para contracenar. É uma cena muda. A música para de tocar. A casa fica em completo silêncio.
Os dois estão se olhando. O homem parece estar em um sonho, seus olhos, semiabertos, suas mãos procuram algo no vazio. Então vem Colombina. De olhos fechados. O homem, agora, com os olhos abertos, vai até ela. Tira-lhe as roupas. Toca-lhe o corpo calmamente. Abraça Colombina. Leva-a ao chão. Deita-a. E, quando se ajoelha para deitar sobre Colombina, ela se levanta. Corre ao redor dele. Gargalha e cospe em seu rosto.
Pierrô está fixo na encenação. Seu coração bate acelerado.
Após cuspir-lhe o rosto, chuta sua barriga. Ele cai no chão. Ela pega um punhal e enfia em seu peito. Ela sai da sala. Ele levanta do chão, parecendo assustado, parecendo ter acordado de um terrível pesadelo. Depois sai da sala.
Todos aplaudem, gritam “parabéns!”, “maravilha!”. Duas lágrimas escorrem dos olhos de Pierrô.
- Que aconteceu, Pierrô? Se emocionou com a cena?
- É... me emocionei...
- Chega de fortes emoções! Vamos pegar uma bebida! Venha!
Vão até a cozinha. Nos outros cômodos da casa, muitos casais se beijam e transam. O rock volta a tocar. Pegam duas cervejas e vão à varanda.
- Trapo, me espere aqui. Vou ao banheiro.
- Claro! Vai lá! E vê se pega uma, cara!
Passando pela sala para subir as escadas, encontra-se com Colombina.
- Oi!
- Olá...
- Quero falar com você.
- Fala.
- Vamos até lá em cima?
- Para quê?
- Vamos?
- Não... Prefiro me sentar ali na sala, estou cansada por causa da cena...
Sentam-se no sofá.
- Fala logo, que não posso perder meu tempo.
- Colombina, eu quero você! Não aguento mais tanto tempo guardando isso no meu coração... Quero você!
Ela o olha com desprezo.
- Você me quer? Isso é uma declaração? Você está apaixonado por mim?
E gargalha, como na esquete.
- O que é você? Um palhacinho de festa infantil! Nunca me chamou a atenção! Em todo esse tempo de teatro! E outra, não sou de me apaixonar, não gosto de homens que se declaram, que se apaixonam, que amam, que se pintam de palhacinhos! Nem se pintar você sabe! Você é ridículo! Eu vou te mostrar do que eu gosto!
Pega o celular e manda uma mensagem para alguém.
- Você por aqui, Pierrô! O que você quer, Colombina?
- Trapo?
- Você sabe muito bem o que eu quero!
Trapo agarra com ferocidade o corpo de Colombina. Eles se beijam como animais. Ela se deita no chão. Ele vai para cima dela.
Pierrô está para tapar os olhos com as mãos.
- Seja homem, palhacinho! Veja tudo! Olhe o que eu gosto!
Ele obedece e assiste ao ato.
- Agora pode ir embora, palhacinho! A festa terminou para você! Palhaço!
Quando ralamos queijo e por descuido ferimos nosso dedo; ou quando descascamos alguma fruta e por descuido a lâmina corta nossa mão; ou quando pegamos uma flor, mas não percebemos que há espinho e ele entra em nossa pele; ou quantas situações imagináveis de dores pudermos lembrar e imaginar; assim se sentia o nosso Pierrô.
Sai da casa sem se despedir de ninguém. Seu andar é de um derrotado. Não. Seu andar é de um ninguém. Anda arrastando seus pés no chão. Cabisbaixo. Lágrimas saem dos olhos, manchando sua maquiagem, fazendo-a escorrer. Desmancham-se também seus sentimentos e sua alma, uma amizade e um amor.
Tropeça em uma pedra na calçada. Cai no chão. Rasga sua calça, nos joelhos, que começam a sangrar. Demora-se para levantar. Ouve um ruído, um barulhinho se aproximando. Senta-se na calçada.
Era um cãozinho. Estala os dedos, e o cãozinho vai para o seu colo, com o rabinho balançando. Acaricia o animal. Ele lambe sua mão. Pierrô olha fixo nos seus olhinhos de cachorro. Parece que uma pequena lágrima sai dos seus olhinhos ou dos de Pierrô.
- Você é um cachorrinho bonitinho! Vou te levar para minha casa!
Pierrô, naquela noite, desistiu de amar Colombina ou qualquer outra mulher, desistiu de procurar amigos; desistiu de viver de ilusões. Agora Pierrô só teria ao seu cãozinho e seu cãozinho a Pierrô.

Gabriel Sant’Ana

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Cinquenta centavos

Quando entrou em casa, vazia, subitamente sua coleção de moedas de cinquenta centavos, que estava dentro de um recipiente de vidro no meio da mesa da sala, desabou no chão. O que se poderia chamar de baú de vidro das moedas se quebrou. Eram milhares de moedas. Tomou um enorme susto com o acontecimento.
Porém o barulho das centenas de milhares de moedas de cinquenta centavos superou o susto.
Vibrava o caos nos ouvidos.
Dentro de si uma paranóia louca, prazerosa, irritante. Era mais do que música eletrônica, mais que o som de dentro de uma concha, mais do que uma mulher reclamando, mais que várias crianças chorando porque os pais não compraram o brinquedo tão desejado.
Era algo que há tempos não sentia, não escutava. Algo que deixava tonto.
Não tinha provocado aquela sinfonia anormal. Sequer a tinha desejado.
Seus pés não conseguiram levar o resto de si à sala para interromper a queda do império de prata, para guardá-lo em sua fortaleza de vidro, que se tinha espatifado.
Os olhos não piscavam, hipnotizados pelo brilho prateado que se refletia com os raios de sol de fim de tarde, que entrava pela janela sem cortina.
Uma das mãos deixou cair a pasta, espalhando os papéis. Seus dedos não conseguiam se mexer. Sentia a pulsação do sangue nas veias, o batimento cardíaco, a respiração intensa e eufórica, algumas gotas de suor escorrendo pelo rosto, pescoço, axilas.
Criança, brincava com os amiguinhos de girar as moedas, e a que ficasse por mais tempo rodando, venceria. Antes de fazerem girar as moedinhas, jogavam para cima e se divertiam com sua queda, com aquele som. Som de moeda.
Muitas vezes, dentro do ônibus, o trocador, dando o troco a um passageiro, deixava a moeda cair, não por descuido, mas pelo movimento rápido do ônibus. Era gostoso ouvir aquele troco caindo no chão do transporte.
Decidiu fazer coleção de moedas de cinquenta centavos em um dia quando, passando por uma calçada, encontrou uma moeda desse valor. Sempre o atraíra essa moeda, seu peso, seu formato. Não era fina como uma moeda de um real, de dez centavos, ou de cinco. A de vinte e cinco não fazia o seu tipo. Sua cor não lhe agradava. Nem o desenho do número.
Além disso, o número cinquenta era belo, encantador. Sempre que jogava na loteria, tentava, entre outros números, o cinquenta.
Mais de dez anos, juntou, ininterruptamente, moedas de cinquenta centavos. Caso não conseguisse uma delas em algum troco, trocava moedas de cinco, dez e vinte centavos em mercados, jornaleiros ou bancos pelas de cinquenta. Fez trocar, inclusive, vinte reais em moedas de cinquenta centavos, dia desses.
Colocara em mente essa ideia de juntar o máximo de moedas e, depois, jogar todas elas para cima, a fim de obter o máximo prazer de sentir a vibração da queda das moedas, de ouvir aquele eco nos ouvidos. Em criança, em adolescente, antes desse acontecimento estranho, nunca havia conseguido sentir de fato o que era uma moeda cair. Sentira, sim, alguns gozos rápidos e fugazes. Não buscava prazeres momentâneos. Buscava o prazer. Não qualquer prazer. Mas o prazer de sentir por completo a queda de milhares e milhares de moedas. Pois com o máximo delas, o tempo em que permaneceriam fazendo barulho e girariam e se colidiriam seria maior.
Assim como uma mísera e esquecida moeda de cinquenta centavos fora por ele encontrada, ou ela o encontrara, por acaso, sem intenção, sem motivos e razões; assim foi que aconteceu o que mais tinha desejado instintivamente desde os cinco anos de idade e tinha colocado em mente aos vinte e cinco.
Ali, naquela sala, estático, hipnotizado, sentindo intensamente em seu corpo e mente. Acabaram as ideias, as sensações falsas. Fica ele também a rodar, a cair. Acaba a vida. Torna-se moeda.

Gabriel Sant’Ana

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Fds

- Cala a porra da boca, Jorginho! Não está vendo que essa merda toda está engarrafada! Faz esse garoto parar de chorar, Lisa! Não está vendo que estou irritado! Plena sexta e esse trânsito assim! Que merda! Vamos chegar que horas? Antes tivesse saído no sábado pela manhã... Dá um jeito aí no seu filho porra! Que merda deve ter acontecido? Deve ser essa porra de Lei Seca... Ainda bem que não bebi caralho nenhum naquela merda de churrasco da sua mãe... Festinha de merda... E ainda ouvir desaforo dela... Que estou desempregado porque eu quero... Sua mãe é uma vaca mesmo... Foda-se você! Já disse que não suporto ir na casa da sua mãe... E você sempre com seu jeitinho acaba me convencendo a ir...
Uma bela sinfonia de buzinas irradiava pela estrada congestionada. Faróis ligados. Alguns motoristas saíam do carro a fim de ver o que estava acontecendo. Muitos trocavam palavras, buscando razões para aquele engarrafamento instantâneo.
- Mas que coisa, não é? Estávamos com um pouco de pressa, porque estamos indo visitar um primo que está nas últimas...
- Que pena... E esse calor, hein? Nós querendo fugir dessa cidade, querendo descansar nesse Carnaval longe do tumulto e acaba que o tumulto nos persegue! Deve ser o destino...
- Puta merda!
Já se ouvia, a distância, uma confusão entre dois motoristas. Um deles tinha mandado beijinhos para a namorada do outro. Os que estavam próximo saíram para apartar a briga.
- Vagabunda! E você rindo dessa putaria! Gostou desse filho da puta, foi? Sai do meu carro, sua vaca!
- Fala direito comigo! Você quer que eu faça o quê? Você é uma droga de homem...
Meia hora de engarrafamento. Ainda não chegou polícia ou bombeiro. Muitos estão de celulares em mãos. Ligando para algum familiar que os esperam; ligando pedindo ajuda; ligando para a polícia; ligando para alguma rádio informando o absurdo da demora dos bombeiros; ligando para a amante, avisando que vai chegar atrasado, pois um engarrafamento do inferno pegou de surpresa; jogando algum joguinho do celular para ver se o tempo passa mais rápido e se se acalma.
Começa um burburinho nervoso, parecendo aquela brincadeira de criança: telefone sem fio. A informação vem chegando às pressas, e carregada de irritação, nervosismo, batidas no carro, xingamentos, cusparadas no chão, olhos esbugalhados, choros de crianças, aflições, orações a Deus, aos santos, aos orixás.
- Estão dizendo aí que uma mulher se jogou na frente do caminhão...
- Nossa senhora! Que horror!
- Não é bem assim não. Disseram que ela tinha discutido com o namorado e que ele terminou com ela. Por isso ela quis se matar. Disseram até que tem um bilhete em uma das mãos da garota...
- Mas ela tinha que se matar justo hoje! Que inferno! Atrapalhando a viagem de todo mundo! Tenho negócios a resolver da minha empresa e não posso ficar aqui esperando...
- Não é só você que tem coisa séria pra resolver! Minha tia está internada no hospital, com câncer... Estou indo lá visitar ela...
Depois de duas horas de irritação, desespero, brigas de casais, choros de crianças, desmaios, o trânsito começa a fluir.

Gabriel Sant’Ana

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O vento das cinco

Sempre gostei de beber água quente. Mesmo sabendo que água não tem gosto, pra mim tem gosto sim. Água quente tem gosto. Não gosto de água gelada porque é artificial. Ela perde a mais preciosa característica de uma água verdadeira. Sua natureza de terra, de chão, de vida, de calor do sol. Água gelada escamoteia tudo o que tem de mais puro e natural. Bebo água quente, tomo banho com água fria.
Pode parecer esquisito. Não ligo o chuveiro no quente. Isso também é escamotear as coisas. Quando alguém vai pra praia, aperta o botão pra água ficar quente? E na cachoeira? Não tem como. Primeiro se coloca o pé na água, depois as mãos e os braços, sente aquele arrepio gostoso, por causa da temperatura da água, mas depois se joga naquele mar. Assim é em casa. Tudo na maior naturalidade. Nada de frescuras.
Bolo. Adoro bolo. Não aqueles com glacês, ou cheios de recheios, coberturas, de muitos sabores. Prefiro o bolo mais tradicional. Aquele que leva essência de baunilha, que se come à tarde, com um cafezinho e uns pães franceses da padaria da esquina.
Mas, ainda assim, nada se compara ao maravilhoso vento de fim de tarde. Todos os dias, por volta das cinco da tarde, sento na minha cadeira e espero por ele. Fico a observar os pássaros no céu, as árvores do meu quintal, a minha casa, os vizinhos que chegam do trabalho cansativo.
Muito já perdi nesse meu caminhar. Mas perder o vento das cinco não posso. Já perdi minha caneta azul dentro da minha casa, nunca mais achei, não sei se está no meu quarto, ou na sala. Desisti de procurar. Já perdi a minha xícara preferida. Não me lembro se deixei cair da mesa ou se a emprestei. Perdi minha mulher, meus filhos, minha família. A única lembrança que tenho deles está em um álbum velho e empoeirado que, todas as manhãs quando acordo, abro, viro suas páginas e relembro aqueles momentos que se foram.
Sei que hoje, depois de sentir o vento das cinco tocar meu rosto, minhas mãos, meus pés descalços, serei um com ele.


Gabriel Sant’Ana

Cena 2

- Não posso mais...
- Como assim não pode mais?
- Não posso, simplesmente, não posso, não consigo...
- Você me fez fazer isso tudo para chegar agora e dizer que não pode mais, que não consegue? O que você pensa? Acha que tenho todo o tempo disponível para você?
- Não é isso... Não é assim...
- Como não é isso? Com certeza é isso!
- Mas o que é isso? O que você está pensando?
- O que eu estou pensando? Não comece com essa mania de querer reverter a história e me confundir.
- Eu te confundir?
- Sim. Mais do que me confundir, você me fez perder tempo...
- Não fiz nada disso. Esse alguém foi você. Porque foi você que quis entrar nisso. Qual o problema de eu querer parar por aqui?
- Isso foi acordado entre nós dois. Um não poderia deixar a responsabilidade para o outro. Ambos teriam de dividir.
- Cansei de dividir com você.
- .............. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Não se importe, senhora!

Caminhava sem rumos pela rua. Um completo tédio o dominava. Pessoas felizes nas calçadas, no meio da rua, casais alegres se beijavam, crianças corriam brincando, uma família comia o churrasquinho e bebia sua cerveja e refrigerante em um barzinho. Tudo era alegria, felicidade em plena noite de quarta-feira. Por que não podia se sentir feliz agora? O que faltava? Não havia adiantado muito o jogo de futebol com os amigos na quadra. A conversa com a namorada tinha sido desastrosa.
Avista o supermercado. Por que não entrar? Por que entrar? Não tinha nada ali para fazer. As compras já fizera há algumas semanas. Se não tinha nada para fazer ali, não havia, pois, motivos para entrar. Portanto que voltasse para sua casa, já que não tinha mais nada para fazer na rua e já tinha andado bastante, os pés já estavam doloridos, saíra de chinelos, antes tivesse colocado um tênis, o que iria permitir que andasse mais um pouco e não sentiria dores nos pés.
Sentiu-se tentado para entrar. Apesar de toda lógica que fizera, deixou-se levar pela emoção. Ou que seja lá isso que estava sentindo. Mas era anormal. Não era o que deveria estar fazendo. Deveria se controlar, controlar suas pernas, que já o levavam para dentro do supermercado. Nunca algo assim lhe acontecera.
Caminhava, agora, entre os produtos de limpeza, entre os macarrões, frangos congelados, biscoitos recheados das mais variadas marcas, entre refrigerantes e bebidas alcoólicas, entre pessoas e mais pessoas que faziam algo de útil, suas compras do mês.
Parece que o olhavam os fiscais do supermercado. Deveria disfarçar algum compromisso, alguma irritação, pegar algum bloquinho e fingir riscar os itens de compras. Não deveria chamar atenção.
Não só caminhava. Fingia uma atenção neurótica ao olhar os preços dos produtos. Fingia uma irritação doentia pelos preços altos, pelos esbarrões que muitos carrinhos davam nele, pelos telefonemas de sua mulher. Fingia uma preocupação sem limites pelos futuros gastos no cartão de crédito e pela fatura que ainda não tinha pagado, além das contas de luz, telefone, escola do filho, material escolar, roupas, presentes, gastos que já passavam de mil reais.
E pegava uma lata de leite condensado e ficava olhando a receita do verso. E comentava com alguém próximo sobre os preços que haviam aumentado demais, ou do forte calor que fazia, ou dos trens lotados que, todos os dias, pegava voltando do trabalho. E corria com pressa ao ouvir a promoção-relâmpago do leite semidesnatado.
Seu carrinho estava um pouco cheio. De quase tudo havia colocado ali. Olhou o relógio e figurou apreensão pela hora. Comentou com uma pessoa na fila que sua mulher o estava esperando com o material para o bolo do aniversário do filhinho, que será no dia seguinte. Mas, como as filas estão lotadas, quilométricas, talvez tivesse de fazer as compras no dia seguinte e, o pior, em cima da hora. As pessoas se compadeceram dele e deixaram que ele passasse a frente e fosse logo pagar suas compras. Eram cinco pessoas em sua frente. Ele agradeceu. O caixa foi passando os produtos. Ele pega sua carteira. Abre. Não era possível! Como isso aconteceu? Bem que havia desconfiado de seu colega de trabalho... Havia roubado seu dinheiro e seu cartão de crédito! Logo ali no trabalho, aproveitando sua ida ao banheiro! Começou a chorar, a ficar em prantos e em pânico.
Havia uma senhora na fila e ficou sentida pelo caso triste. Como boa serva, pagaria suas compras, que não se importasse, era uma boa ação que ela deveria fazer, não era o que estava escrito: que amasse ao próximo como a si mesmo? Não deveria apenas saber, mas praticar. Que isso, senhora... Não era necessário. Ele voltaria no dia seguinte...
E a senhora pagou suas compras.
Agradeceu mais de cinco vezes à senhora, beijou-lhe o rosto, as mãos, ficou, inclusive, de joelhos. Ela era um anjo caído do céu. A senhora retribuiu-lhe os agradecimentos e que ele fosse em paz para sua casa.
No dia seguinte, ele irá a outro supermercado. Dessa vez faria compras para sua avó, a quem muito amava, que estava em um asilo e que só tinha a ele.

Gabriel Sant’Ana

De uma cabine

- Por favor, senhores, por gentileza, venham mais para esse canto para não prejudicar a passagem das outras pessoas. Alinhem-se e tenham paciência. Isso acontece às vezes, tenham paciência, acalmem-se. Os que forem mais jovens, por favor, deem lugar aos mais velhos. Acabei de falar com o administrador geral e ele me informou que o sistema está lento. Alinhem-se mais uma vez, não quero tornar a repetir. Estou falando chinês?

Não, senhora, isso não é permitido.

O banheiro, você segue em direção ao banco e vira à direita.

Senhores, o sistema voltou ao ar. Por favor, entrem de dois em dois.

A senhora poderia fazer seu filho parar de gritar? Ele já está incomodando aquela senhora.

Os senhores estão com os documentos em mãos? Se faltar um único documento, não poderão entrar. E, como já gravei os rostos dos senhores, não poderão voltar outro dia! Mesmo que eu não esteja aqui amanhã, há câmeras gravando tudo o que está acontecendo, então não há como disfarçar.

Não pode entrar vestido de bermuda, camiseta nem chinelos.

Os que não forem atendidos até às 16h. deverão voltar amanhã a partir das 7h. O expediente é até às 17h.

Hoje só serão atendidos até o número 50. Os que receberam do número 51 em diante voltem amanhã.

Por favor, não fiquem conversando, isso atrapalha o processo da empresa e fará com que o sistema fique mais lento. Além disso, não comam na fila e façam suas crianças dormirem ou ficarem quietas. Se algum dos idosos se sentir mal, encaminhe-se à porta de número 21 para ser atendido por um de nossos médicos.
Infelizmente já são 16h. e vocês terão de voltar amanhã. Nossa empresa já está fechando os processos de hoje. Sem reclamações e tumulto voltem para casa ou deem uma volta pelo shopping.
Tenham uma boa tarde!


Saem uns quatro seguranças de uma porta da empresa para garantirem a ordem em frente à empresa e para impedirem a aproximação de alguma pessoa querendo maiores informações.


Gabriel Sant’Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...