quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Brinquedinhos

Jorginho adorava brincar no jardim de casa. Quase todo mês, seu pai lhe dava brinquedos em miniatura, no estilo do Lego, mas eram de madeira e não tinham cor ou rostos. Brinquedos sem nenhuma expressão. Segundo o pai, isso iria fazer com que o garoto desenvolvesse a criatividade e a imaginação.

Estava em casa, no feriado, tempo chuvoso, os coleguinhas desmarcaram o jogo de futebol na pracinha. Pegou sua coleção dos brinquedinhos de madeira para se distrair. Estava em casa com a mãe. Seu pai tinha ido ao mercado. Havia ligado há vinte minutos avisando que demoraria um pouco, pois estava entupido e as filas quilométricas.

Como odiava aqueles brinquedinhos! Como seu pai o irritava tratando como se ele fosse um bebezinho!

Não podia ir ao jardim, chovia bastante. Foi brincar no quarto dos pais. Fez como se fosse uma cidade de brinquedinhos em cima da cama. Sua mãe se irritaria certamente. Chamou por ela. Ao ver sua cama desarrumada, deu um grito histérico. Jorginho tentou acalmar a mãe. Ela foi para lhe dar uma chinelada. Ele pegou o pé da cama, que havia quebrado, e bateu forte na cabeça da mãe.

O pai fora ao mercado às 17h. e chegou a casa às 19h. Estava acontecendo alguma festa em casa? Cadê a mulher? Não estava na cozinha ou na sala. Papai, vem aqui pro quarto.

Sobre a cama, perfurada, com quase todos os bonequinhos de madeira enfiados no corpo, os dedos transformados em prédios, os cabelos arrancados eram fios de alta tensão, a barriga era uma espécie de baía, da vagina saíam vinte bonequinhos de madeira, os dentes estavam colados na parede para parecerem estrelinhas.

Estático, sem palavras ficou ao ver a cena.

Agora sim, papai. Você entende? Vamos brincar?

Gabriel Sant’Ana

Ungues

I

O espírito do homem suporta a doença,
Mas quem erguerá um espírito abatido?
Provérbios 18, 14

Toda vez que virava as páginas dos livros, irritava-se com suas próprias unhas. Doentiamente, tentava não marcar as folhas. Era descaso, falta de educação aquelas marquinhas finas nos cantos das páginas. Além da sujeira, que, por mais que tentasse, acabava se encrostando.
Odiava, ao coçar a cabeça, as feridas que lhe faziam as unhas. Nunca cicatrizavam. Parecia não resolver, por mais que tomasse banho, lavasse com shampoo e condicionador, anticaspa, a coceira nunca parava. Não era só na cabeça, mas nos braços e nas pernas. Já fora ao médico, piolho não tinha ou qualquer doença de pele.
Olhava para as unhas dos pés, não o incomodavam. Mas as das mãos. Tinha parado até de apertar as mãos das pessoas, de acenar, de acariciar a esposa, de segurar seu filhinho. Era mais do que nojo.
Cortava as unhas compulsivamente, de três em três dias. Lavava as mãos sempre com detergentes, sabão em pó, sabonete, cloro, água benta. Não usava tesourinha de unha, mas aquele cortador vagabundo que se vende no trem a cinquenta centavos. Lixava as unhas. Esfregava-as com a esponja da cozinha. Estava perdendo as digitais e começava a ter problemas no trabalho, pois, com muita dificuldade, batia o ponto.

II

Tenham nos lábios o louvor de Deus,
E nas mãos a espada de dois gumes
Salmos 149, 6

No quarto, com as luzes apagadas, sete velas acesas, de frente para o espelho, nu, com as unhas grandes, sujas, arranhava-se por inteiro e sentia um misto de prazer e ódio com o sangue e a carne e os pelos entre as unhas, e o sangue escorrendo por todo o corpo. Não sentia dor, nem lágrima saía-lhe dos olhos. Estava consciente do que fazia. Sua mulher e o filho não chegariam nesse dia. Tinha escrito uma carta odiosa, marcada com as unhas. Deixou-a sobre a mesa da cozinha, toda arranhada num acesso de raiva.
O facão de cortar carne ao lado direito, limpo há duas semanas ritualisticamente pelas mãos dentro de luvas de couro. Pegou o potinho com as unhas guardadas há quinze anos, tomou aleatoriamente uma delas e fez com ela o sinal da cruz.
Com a mão direita, sem luvas, tomou do facão e extirpou a esquerda com um golpe só. Com os dentes, começou a morder ferozmente a direita, arrancando as carnes, principalmente os dedos. Após isso, mastigou os restos do que se chamavam mãos e dedos e os engoliu.
Passada meia hora do ritual, sentiu um forte ímpeto de acabar de vez com as unhas dos pés. Devorou cada dedo. Durou duas horas o ritual e o finalizou dando glórias ao Criador, cujas unhas e dedos não eram mencionados no Livro.

Gabriel Sant’Ana

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Côncavos e convexos

Toda aquela sua irritação não adiantara para muita coisa. A mulher não deixou de sair para o cinema com as amigas para ficar em casa lhe fazendo companhia ou na cozinha lhe fazendo algum lanchinho para o final da partida do Campeonato Brasileiro, que passava na televisão.
Já estava há muito tempo querendo dar o grito de independência, ou de alforria. Estava apenas esperando uma oportunidade melhor.
Há cinco anos de casados mais sete de namoro que vivia subordinada a seu querer, a suas vontades mais mesquinhas e risíveis; há anos não experimentava o simples ato de respirar o ar e o de olhar as toscas plantas que ele tinha plantado no jardim. Sua vida patética tinha se restringido à tríade cama-mesa-e-banho.
Tudo culpa de sua falta de vigilância e de rigor. Como não tinha percebido que já não era mais a mesma? Que já não obedecia do jeito de antes? Era necessário fazer alguma coisa. Talvez estivesse saindo com alguém do curso. Vagabunda. Safada.
Comprou-lhe um celular e mandou que, de dez em dez minutos, ligasse para ele, avisando o que estava acontecendo. Obrigou que ela lhe desse as senhas dos e-mails. Estava apenas cumprindo com os deveres de marido e protegendo-a de possíveis perigos.
O sufoco da tríade de que se livrara tinha voltado. Sentiu que as mãos dele agarravam e pressionavam todo seu corpo, seu pescoço, suas pernas, seus braços, seus pensamentos, inclusive. Com quem você conversou hoje? Alguém deu em cima de você? Algum homem te tocou? Não vi você sair de casa, com que roupa você está vestida? Está de batom vermelho... o que lhe disse sobre isso?! Foi de saia?!
Conseguiu sair de casa, enquanto ele estava dormindo, sem fazer barulho algum. Colocou sua melhor calça jeans, uma bota de couro, uma blusinha justa de seda, a jaqueta preta. Estava chuviscando. Tinha marcado com as amigas de estarem duas horas antes da sessão. Encontrariam-se em frente ao McDonald’s.
Chegou. Compraram casquinhas de baunilha. Foram conversando em direção ao cinema.
Como você está bonita! O que houve com você? Por que esse rosto assim? Por que não fala nada? Como pôde se esquecer? Poderia ter esquecido sua identidade, CPF, tudo. Menos o celular! Que ficou em cima da mesa da cozinha. Como isso foi acontecer? Onde estava com a cabeça? Por que não nos responde? Se pegasse um táxi, talvez conseguisse pegar o celular e ele ainda estivesse dormindo... Vagabunda. Esqueceu de propósito o celular. Está com algum homem...
Viu o recado que ela tinha deixado no braço do sofá. Estou indo ao cinema com a Karla e a Fabíola. O filme é das 14h. às 16h. Estarei em casa às 17:45h. Te amo! Idiota, ainda começou a frase com um pronome oblíquo... Ela que volte para pegar o celular, não vou ao shopping ensinar a ela como deve se comportar.
Não pegou o táxi. Não voltou para casa nesse dia. Ele pegou o celular e foi ao shopping. Não a encontrou lá. Ficou nervoso, preocupado. Onde ela estaria? Ai de mim quando ela chegar... Por que fui pegar no sono? Por que não aceitei vir com ela? Poderia ver a reprise do jogo mais tarde... Até que o filme não seria tão ruim assim... Puxa vida... Como vou fazer para achá-la?
Voltou para casa com um enorme peso na consciência. Ela com certeza iria fazer um escândalo. E ele não teria nenhuma justificativa para dar. Estava errado. Está certo que muitas vezes ela aumentasse o que ele fazia de errado; mas ela está correta em cobrar dele, em exigir.
Todo mês, ela obrigava que ele lhe desse mil reais para comprar roupas, fazer lanches, distrair a cabeça. Não quis se casar com ela? Ele que fizesse suas vontades. Era esse o contrato. Se não fizesse o que ela mandava, cuspia-lhe o rosto, xingava palavrões e houve até água fervendo no rosto. Já foi até queimado a ferro. Ele pedia perdão, ajoelhava-se, beijava seus pés, implorava sua amor. Que amor? Ele não quis arrancá-la da casa da mãe? Arcasse com as despesas e obrigações. Ele devia sim fazer a janta, devia sim lavar as roupas. Ela já estava cansada, já tinha feito muito na casa da mãe. Agora ele que a servisse.
Exigiu que ele ligasse para ela e lhe desse os mínimos detalhes do seu dia de trabalho. Que o celular nunca ficasse descarregado. Ele só deveria sair com amigos, nunca amigas. Homem não tem amizade com mulher, tem é interesse, vontade de ir para cama com ela. Ou acha que ela era idiota? Quer assistir ao jogo de futebol, que assista! Não deixaria de ir ao cinema com as amigas, que não se chamam Karla nem Fabíola, mas Carlos e Fábio. Sim. Homens. Iria sair novamente no próximo sábado. Já estava cansada de ver o mesmo filme com ele, sempre as mesmas cenas, as mesmas falas. Ela precisa de outra história, ou de todas ao mesmo tempo.

Gabriel Sant’Ana (2011)

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...