Completamente fora de controle
rodopiando na pista de patinação no gelo, a felicidade contagiante estampava-se
e se irradiava pelos seus olhos, seus lábios. Patinava ora rápida ora vagarosa.
Aquela gostosa sensação do vento sobre seu rosto, espalhando seu cabelo para os
lados. Sua mãe a fotografava feliz, não perdia um movimento sequer, seu dedo
atento aos rápidos instantes da curva da filha, cliques rápidos. E lá está uma
boa imagem capturada! Magnífico!
Foi o minuto de procurar alguma
coisa na bolsa para perder o triste momento da queda da filha. Como não foi o suficiente
responsável para estar atenta à filha?
Parece ter torcido o pé, ou algo do
gênero. Lágrimas escorrem de seu belo rosto, seus lábios tremem e sua língua
produz um som pavoroso, todos ali param a sua prazerosa brincadeira, ficam
paralisados diante da cena.
Não foi suficientemente
responsável, não foi fiel à promessa que fizera a si mesma de em todos os
momentos de alegria, tristeza, dor, estar com a câmera direcionada ao fato e capturá-lo,
guardar para a recordação.
Assim começara quando pariu a
filha, fez que o marido entrasse na sala de parto para filmar tudo desde o
início, que não saísse sequer para ir ao banheiro. Filmou e fotografou os
primeiros passos, a primeira papinha, o primeiro espirro, a primeira fraldinha
suja, as primeiras dores de barriga, as quedas na escada, a festa de quinze
anos, de dezoito, de vinte e um, os beijos com o namorado na sala da casa, a
filha cochilando no sofá, a filha tomando banho, fazendo suas necessidades.
Já tinha mais de cem álbuns de
fotos, mais de duzentos vídeos da filha. Todas as quedas, todos os aniversários
dela e de seus colegas, as festinhas da escola. As fotos da filha no jardim
zoológico. Como foi linda aquela época. A filha debaixo de uma árvore, tomando
água de coco, fazendo pose para a foto.
Mas pelo descuido de ir procurar na
bolsa o pente, ou o celular que tocava. Que erro irreparável. Não, não. Mas você
sabe como foi que a minha filha caiu? Nossa, foi terrível, ela estava vindo de
costas e esbarrou naquela garotinha ali de blusa vermelha... Ah sim, obrigada.
A filha continua a cair em pranto. Alguns
tentam acudi-la. Dói demais a perna. Foi uma queda brusca. A mãe invade
correndo a pista de patinação. Todos ficam comovidos. De fato era muito cuidadosa
aquela mãe. Abrem espaço para que ela possa ajudar a filha, fazê-la
levantar-se. Minha filha, ande logo, pare com isso, já já a gente vai resolver
isso, mas se levanta logo desse chão, sua querida e zelosa mãe não conseguiu
fotografar nem filmar o instante em que você caiu, anda logo, se levanta, eu
quero que você se levante agora, anda, para de choros e seja obediente, se
levante, foi só uma quedinha, se levanta e retorne ao lugar onde você estava
antes de patinar de costas e esbarrar naquela menininha ali de blusa vermelha,
ainda bem que ela não se machucou, imagina, uma menininha de cinco anos toda
quebrada, anda logo, ei moço, vem aqui, é, vem aqui, levanta a minha filha,
estão olhando o que, isso, levanta, com cuidado meu amorzinho, anda minha
filhinha, isso, que lindinha, sua mãezinha vai voltar pra lá e filmar tudinho
do jeito que foi, não fica assim não, depois nós vamos fazer um lanchinho,
deixa que eu pago, não precisa gastar a sua mesada, pronto, pronto.
Ela retorna ao local privilegiado
em que daqui alguns minutos irá filmar com o máximo de perfeição o momento
exato da queda, apesar de ser uma repetição, mas tudo sairá do jeito que foi há
cinco minutos atrás, assim deve ser. Anda logo minha filha, pode começar. Todos
se sentem também, de alguma forma, obrigados a retornarem às posições em que
estavam naquele momento. Movidos pelos gritos e ordens daquela mãe refazem os
movimentos, os giros, a filha machucada, dolorida, algumas lágrimas nos olhos e
baixos gritinhos, refaz o caminho, esforça-se para patinar de costas, a mãe lhe
grita que mude a feição, que não aparente dor alguma, a filha esboça um sofrido
sorriso, ficou bem, continua a patinar de costas, a menininha de blusa vermelha
patina mais rápido em direção à filha, assim que aconteceu, a menininha
patinava sem prestar atenção às pessoas que vinham em sua direção.
Magnífico. Não tão perfeito como
deveria ter sido. Mas se gravou. Agravaram-se as dores, intensificaram-se os
gritos e choros e lágrimas. Não chore tanto assim, anda logo, vamos agora fazer
um lanche e depois eu te levo no médico, ficou ótimo, meu amor, ótimo, lindo,
você já devia estar acostumada com essas coisas, é assim essa vida, eu hein,
não se lembra daquela vez no clube, que você levou uma bolada no jogo de vôlei
e que eu não consegui filmar porque eu estava comprando uma garrafinha d’água,
então, o que eu fiz para você não perder aquele momento, para ele não ser
esquecido, então, viu, é tudo para o seu bem, meu amor, mamãe te ama muito,
viu, vamos lá, comer aquele delicioso hambúrguer...
Gabriel Sant'Ana