quinta-feira, 7 de junho de 2012

Palhacinho


Eram batidas de um tambor, ritmadas, sem cessar, vindo de dentro, explodindo sempre em formas diferentes, mas sempre nos mesmos instantes, minutos, contados à risca pelo relógio da cozinha ou do quarto, até do pulso caso estivessem próximos.
Ora batia com a cabeça na parede, no berço, no colo de alguém, no chão. Toda marcada, não adiantavam as pomadas, os gelos, as ataduras. Eram muito fortes as batidas. Enlouquecedoramente irritante.
 Ora tossia compulsivamente, ritmado, mecânico, irritantemente neurótico para alguém de tão pouca idade.
Ainda não haviam percebido, para infortúnio familiar, que a escuridão visual da criança aumentava assustadoramente, em ritmo lento, progressivo e fatal.
A temporada do circo não estava dando resultado favorável à família. Estavam há duas semanas naquele pequeno bairro suburbano medíocre, em uma pracinha. Conseguiam com um padeiro da localidade o pouco para sustento próprio, mas não por eles mesmos, mas por causa dessa criança, que já chamava a atenção dos moradores, inspirando compaixão a todos que a viam no colo da mãe, cartomante que dava consultas por R$ 2,00, ou nos braços do pai, palhaço de rosto tristonho, que sempre levava ovos na cara pelo público.
Todas as noites, pintavam a infeliz criança de palhacinho.
Dia desses, alguém fora se consultar com a cartomante e lhe perguntou como as cartas não revelavam nada para aquela criança, nenhuma esperança que fosse. A mulher lhe responde que nunca deitara as cartas ao filho. Era expressamente proibido realizar tal ato; sua mãe fizera isso uma vez, e dois meses depois morrera ao atravessar a rua para comprar o pão, um caminhão viera não se sabe de onde. Se deitasse as cartas, o filho perderia os pais, ou um deles aos poucos.


O infeliz tinha uma dessas síndromes nervosas para a qual dizem não ter cura, além da cegueira, como vimos acima. Interessante notarmos que, mesmo dando alegria aos moradores daquele recanto medíocre que era aquele bairro, a família de circenses não tinha uma mísera felicidade. Talvez quisemos dar à história um ambiente triste, o que faz com que alguns se solidarizem com o personagem principal – a infortunada criança, que sequer lhe pusemos um nome.
Mas este relato é verdadeiro porque fomos ao circo num dia que não nos lembramos, pois tínhamos acabado de sair de uma reunião de condomínio.
Fomos à tenda da cartomante. Graciosa, apesar da expressão pesada de anos repetidos de miséria e sofrimento. Seu marido, um homem sem expressão, sem sentimentos, sem muitas palavras. Segundo a mulher, quando tiveram aquele filho, o homem emudeceu. Parece que ele arrancou com a faca que cortava o pão a própria língua.
Fiz uma proposta à mulher. As cartas eram a meu favor.
Naquela noite, pancadas surdas na mulher que há anos não sabia mais. Seu marido na tenda ao lado ouvia com a respiração ofegante. Mas ele sabia que eu mudaria a vida daquela desgraçada criança, além de dar a eles um apartamento.
No dia seguinte, joguei na loteria. Duas semanas veio o resultado, ganhei, como disseram as cartas, como previram as tosses infernais do menino, para minha felicidade e a deles.


Dei o apartamento para o casal. Na verdade, para o mudo. A cartomante ficaria no circo comigo. O circo agora era meu. Fora do avô dele, mas não tinha palavra que pudesse dizer para me contrariar. Queria se livrar do filho, nunca desejou ter tido filho algum com a mulher – que fosse para longe.


Não mais seria palhacinho. Não seria figura secundária naquele espetáculo.
Agora é o próprio espetáculo para divertimento do grande público que vê alegre e contente, como algo maravilhoso, uma criança cega e com síndrome nervosa fazer malabarismos, tocar violão, fazer cambalhota e cantar uma música gutural ininteligível aos ouvidos simplórios.


Gabriel Sant’Ana

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