segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Fiat Lux

As luzes refletiam uma felicidade harmonicamente hiperbólica e escandalosa. Os passantes passavam e ficavam surpresos com tantas cores, tanta irradiação e alegria.
Vermelho, azul, amarelo, branco. Amarelo e vermelho. Azul e branco. Branco e vermelho. Vermelho e azul. Azul e amarelo. Amarelo e branco. Combinações quase eternas. Um ritmo inebriante. Chegava quase a cegar as vistas nervosas, curiosas e invejosas que passavam por ali e que, muitas vezes, paravam por cinco ou dez minutos para adorarem esse espetáculo de luz.
Além disso, colocaram também uma grande árvore de natal de uns dois metros. Iluminaram a árvore, enfeitaram com guirlandas, bonequinhos de Papai Noel, guinominhos, duendes, tudo que fosse possível e imaginável, inclusive algumas latinhas de refrigerante, tampinhas, sacos plásticos, chaves antigas, moedas.
Essa exuberância ficava na frente da casa.
Ainda não era dezembro.
Era simplesmente o prazer de ser o primeiro da rua a enfeitar o jardim da casa. O prazer de todo ano mudar as luzes, a árvore, de inventar. Alguns vizinhos dizem que é para despertar nos outros a tão velha e conhecida inveja.
Não era somente isso. Do outro lado da rua, outra casa entrou naquele combate. Mas não fantasiava a frente da casa com coisas natalinas. Fazia diferente. Enchia a frente da casa, o muro, as plantas, as árvores, o telhado, de placas de diversos tamanhos com muitos dizeres. Felicidades! Boas festas! Muita paz e saúde! Bom fim de ano! Posso tudo naquele que me fortalece! Casa da vovó. Aqui mora gente feliz! Sua inveja é o meu sucesso. Se os que passavam em frente àquela casa ficavam inebriados com tanta iluminação e beleza, os que passavam em frente a esta ficavam atentos e surpresos com tantas palavras de confiança, fé, esperança e sabedoria. Muitos inclusive anotavam nos celulares e em bloquinhos ou agendas os dizeres. Há relatos de pessoas que estavam muito tristes e que, passando e lendo aquelas frases, retomaram a alegria.
Comparando as duas casas, talvez seja ridículo enfeitar a casa com enfeites natalinos fora de época, vencendo assim a segunda casa. Mas, analisando com mais cuidado, a segunda casa não pode ser a vencedora, pois é visível no rosto do dono da casa o desejo de revanche e o almejo pelo reconhecimento dos vizinhos.
Não seria possível pensar em empate. Talvez até em um momento posterior, quando os ânimos se acalmarem.
Mas não. Alguns já informaram que passando os festejos de fim de ano, começa outra revanche – a do Carnaval. Não só enchem a frente com purpurinas, confetes, serpentinas, mas também se fantasiam. Um leitor desatento pensará que se fantasiam à noite para irem à festinha de rua. Não. Durante todo o dia ficam fantasiados. E não vá pensar que é a mesma fantasia. Se for pensar com criticidade e analisar os parágrafos acima, deduzirá que o desejo de destaque é tão forte no coração desses personagens, que compraram um número quase infinito de fantasias e adereços, para cada dia da semana, para cada momento em que saírem e entrarem em casa e de novo tornar a sair. De Clóvis ao Macaco, de Cinderela ao Frankenstein. Não eram só os conhecidos. Inventavam. De Saco de Lixo a Homem Latinha, de Reciclável a Ferro Velho. Catavam tudo quanto era resto de caixa, lata, tampinhas, roupas dentro de saco de lixo.
Alguns vizinhos quiseram fazer parte desse grupo. Procuraram os donos dessas duas casas e falaram do desejo de se tornarem membro, de formarem uma equipe. Acesso negado. Não era assim. Não era carnaval. Tudo aquilo era organizado. Mais do que isso, era questão de honra da família.
A questão dessa rivalidade entre as duas famílias começou em um evento da escola, especificamente em uma apresentação cultural. A filha da primeira casa venceu no concurso de poesia, e a filha da segunda, no concurso de dança. Os pais não gostaram e inculcaram na cabeça das filhas um ódio quase mortal e maligno. Em tudo que faziam na escola, as meninas se rivalizavam, desde o primeiro lugar na fila da cantina até as melhores notas nas disciplinas. As duas não eram da mesma turma, mas da mesma série.
Para piorar a situação, as famílias eram da mesma igreja. Se uma ia ao culto da manhã, a outra ia ao da noite. Levavam a sério a lição de que receberam a graça da abundância e da vitória e de que nada iria retirar o que os céus lhes dera, eram vitoriosos e vitoriosos deveriam ser sempre, em tudo.
Deveriam brilhar sempre, pois eram vitoriosos e não eram filhos das trevas. A passagem do arrebatamento do profeta Elias era inspiração e todos os dias a liam.
Em um dia desses, pela noite, um morador de uma casa velha no final da rua, sentindo no seu coração a mais sensível e profunda dor, resolveu pôr fim àquela rivalidade ridícula e de vencer finalmente, por completo.
No dia seguinte, o morador esperou as famílias saírem.
Ambas as casas estavam abarrotadas, entupidas de coisas variadas, daquelas de que tratamos nos parágrafos anteriores e outras que não foi possível mencionar por causa do espaço da folha e da paciência dos leitores de hoje em dia.
Havia levado consigo três garrafas de álcool e uma caixa de fósforos.

Gabriel Sant'Ana

Das orelhas

E modelou dois orifícios laterais na parte superior daquela massa de barro, a que se chama cabeça. Ainda não tinha pensado qual a serventia dessas partes adjuntas à cabeça. Não soube por que criara aquilo, já que não tinha. De onde tirara aquela forma?
Sim. Agora fazia sentido. Eles só me ouvirão, só escutarão a minha voz. Falarei e eles me atenderão. Só reconhecerão a minha voz. Estais proibidos de ouvir outra voz senão a minha, pois no momento em que virardes vossos ouvidos a outras vozes, sereis amaldiçoados.
A serpente viu que a criação das orelhas era muito boa e refletiu sobre outras possíveis serventias. Não era cabível que dois orifícios servissem unicamente para ouvir uma única voz. Isso era absurdo. Quantas coisas interessantes e fantásticas poderiam ser repassadas e recontadas? Como se daria a comunicação? Não se daria.
A mulher ouviu os argumentos da serpente. Ficou com dúvidas. Afinal, era possível ou permitida a ideia de não ficar reprimida a uma voz onissoante? Vá e conversa com teu homem.
Por que devemos ouvir apenas a Sua voz? Por que não posso falar com você, ou debatermos uma ideia? Por que não podemos nos falar? Por que você não pode me escutar? Ou eu te escutar?
Não ouviram os Seus passos, estava caminhando no jardim, pois discutiam a relação e viam a possibilidade de terem um filho no próximo verão. O que estais fazendo que não ouvistes meu chamado? Acaso virastes os ouvidos a alguma voz desconhecida? Agora compreendo essa antipatia e por que estou neste monólogo infernal. Ouvistes a voz daquele animal desgraçado, corruptor da minha criação e de minhas criaturas. Porque não escutastes minha poderosa voz, amaldiçoo vossas orelhas e que não haja compreensão entre vós. Ele lhe falará dos seus desejos mais profundos e tu o ignorarás, fingindo prestar atenção. Ela virá ao seu ouvido pedir-lhe mundos e mundos e tu dirás que daqui a pouco lhe dará. De tempos em tempos, tereis de limpar o interior de vossas orelhas, por causa da vossa desobediência.

Gabriel Sant’Ana

No sofá

No sofá branco. Eram beijos calorosos, cheios de vontade, pecaminosos. Os lábios ficaram vermelhos, o canto da boca ficou com uma pequena mordida. As mãos percorriam o corpo com velocidade e intensidade. Respiravam ofegantes. Olhos semiabertos. Sempre te quis... Maravilha, delícia...ah...ah... Lambe seu rosto, uma respiração no ouvido deixa seu corpo arrepiado. Mordisca o pescoço. Ai...ai...ah...assim não...assim não...estou toda arrepiada... Gostosinha... Mais pequenas mordidas, dessa vez na barriga. Tira-lhe a blusa, deixa o sutiã, cuidado... alguém pode chegar... Calma... fica tranquila... Toca seus seios, saboreando com as mãos. Ai...ah... Tira a calça... Ai amor, pode chegar alguém... Tira, vai... eu sei que você quer... Ai amor... Meio envergonhada, obedece. Linda... Aperta suas coxas, morde suas pernas, lambe. Estou excitada...ah... Isso meu amor... vem aqui... Ela vai. Ah... devagar, querida....
Se, Alexandre estaria muito feliz, orgulhoso de si, se sentiria o homem mais sortudo do mundo. Se. Estava com Carla há dois anos. Eram muitas as preocupações de Carla. Se era ele o homem de sua vida. Se era ele fiel a ela. Se ela deveria ir mais além. Se não iria se arrepender. Se ele não iria magoá-la. Ainda que quisesse, iria esperar pelo momento certo, embora não soubesse que momento era esse, se ele avisaria estar chegando; esperaria seu corpo lhe mostrar o momento da entrega, embora essa entrega não soubesse ainda o que fosse, ou o que significasse; seguiria os conselhos da mãe, pois todo homem era tudo igual, não valia a pena, queria era sacanear com a cara dela, queria todas, não esperasse um minuto que veria.
Mas não adiantava, por mais que fosse sincero, que fizesse cartas, poemas, sonetos, deixasse bilhetinhos, mandasse flores, que deixasse lindos recados no Facebook, que a cutucasse todos os dias. Talvez nunca adiantaria. Nunca adiantará. Talvez desistir fosse melhor, mas se desistisse, mostraria a ela que era verdade tudo o que ela pensava.
No sofá branco, na sala. São as mãos dadas. A mãe de Carla no outro sofá. 16h. Sessão da tarde. Parque dos dinossauros. A pipoca dentro do microondas.


Gabriel Sant’Ana     

Almoço

Arroz empapado
Feijão salgado
Quiabo melado
Frango queimado
Refresco aguado


Gabriel Sant’Ana e Meire Cardoso

Camisetas

                        À minha mãe

Há cinco anos atrás,
Por dez reais,
Comprei duas blusas,
Uma branca e outra preta.

Pedi a meu filho
Desenhasse uma borboleta
Para minha amiga bordar
Na branca.

Usei a preta,
Meu filho não desenhou,
Minha amiga não bordou,
E a branca guardada ficou.

Após cinco anos,
Arrumando o armário,
Achei a branca
E sem bordado vou usá-la.


Gabriel Sant’Ana

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Página 69

             Madrugada de julho. Escorriam pelo vidro da janela do quarto as gotículas de água de um chuvisco intenso. Na cabeceira, o romance, marcado na página 69.

“Entrou pela porta, cautelosamente, não podia fazer qualquer barulho, poderia acordar a velha que dormia no quarto ao lado. Aquele ronco irritante não incomodaria, não atrapalharia o que estavam esperando há uma semana.”

O quarto não era grande, mas confortável, e tinha sido limpo pela manhã. O aroma do produto de limpeza ainda estava grudado no chão de madeira, no armário, na mesinha. Algumas roupas estavam sobre uma cadeira do lado esquerdo do armário.

“Fechou a porta com o máximo de cuidado. Deu duas voltas com a chave. Tirou o casaco e a calça. Colocou-os na cadeira ao lado da cama. Como senti sua falta (em sussurros). Eu também...”

Da janela se via a Lua. Ouvia-se o ruído do vento. Faltavam poucas, não muito longas horas, para o amanhecer. Nas árvores do jardim, dois pardais tentavam se proteger daquele chuvisco. O cão estava na sala de jantar, no andar de baixo, ávido para que a casa acordasse e lhe desse o delicioso pão com pedaços de mortadela.

Seus lábios e línguas fizeram os movimentos mais discretos e sem ruídos. Seus corpos se roçaram, entrelaçaram-se, mãos e braços e pernas e sexos e bocas e cabelos e pelos e salivas e suores e odores e olhares e respiração e pensamento e desejo. Sem pressa, tocando cada mísero e finito minuto no corpo um do outro. Debaixo do lençol branco que fora de sua tia. À meia luz da Lua, que entrava pela brecha da cortina entreaberta.

Antes das cinco da manhã, vestiu-se um pouco apressadamente. Nos vemos na próxima noite? (em sussurros) Sim...estarei sempre te esperando...venha! (em sussurros  agitados) Deixei uns versos para você na página do romance sobre sua cabeceira.

Gabriel Sant'Ana

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Pela tarde

Sentado no sofá. Virei para trás e tomei um susto. Meus cabelos estavam no chão, meu rosto estava se decompondo, meus olhos... Onde estavam meus olhos? Como conseguia me enxergar sem eles?
Batiam as duas horas da tarde. Senti uma fome animal. Levantei-me, fui à geladeira. O leite, azedo, me chamou atenção. Enchi minha caneca, tomei de um gole. Peguei o pacote de pão de forma, mofado, e comi sete fatias com queijo minas. Algumas baratas roíam restos de comida no chão, pisei e coloquei dentro do liquidificador, bati com banana e aveia, a Farinha Láctea não pôde faltar.
Minha mulher chegou às seis horas. Estava no quarto, nu, dentro do edredom, o ar condicionado ligado. Não notou nenhuma diferença em mim. Não acendemos a luz. Fizemos o de costume. Sentiu uma pequena estranheza, eu estava mais agressivo.
Estava mais esfomeado. Comecei mordendo-lhe os dedos dos pés, vagarosamente, seu corpo se arrepiou. Não me segurei mais, arranquei-os. O prazer daqueles dedinhos e o sangue na minha boca. O prazer de seus gritos, seus olhos esbugalhados, sua garganta se avermelhando, suas unhas me arranhando, procurando se desenlaçar de mim.
Ela era linda, semideia. Minha beleza tinha ido àquela tarde. Naquele início de tarde, tomei um banho demorado, enxaguei minha cabeça, sem cabelo, fiz a barba no chuveiro; enxuguei-me, fui me olhar no espelho embaçado. Desgraçado! Nada havia mudado. Lembrei o que meu oftalmologista me dissera. Desgraçado! Minha visão estava perfeita. Lembrei-me da minha consulta com o urologista, semana passada. Inferno!
Ela era espetacular.
Mas fez o que nunca havia imaginado. Não sei como conseguiu. Ela sugou tudo de mim, literalmente. Foi como um feixe de luz a iluminar minha mente, veio a lembrança do dia anterior. Eu na cama, deitado, nu, o ar condicionado ligado. Ela veio, de calcinha e sutiã, vinhos, banhada num perfume enlouquecedor, cabelos soltos, molhados, olhos fatais, desejos em mente. Fizemos o de costume. Para terminar nossa noite, me fez o melhor oral que já tinha recebido. Lambeu-me furiosamente, mordeu-me ávida e delicadamente, chupou-me, engoliu-me, engasgou-se propositadamente, babou-me, lambeu-me mais vezes, gargarejou, cuspiu, engoliu, tossiu, sugou-me por completo, desgastou-me.
Tudo de mim saiu naquela rajada de sêmen na sua boca. Não percebi alguns fios de meu cabelo na cama. Só agora me dei conta. Transformou-me em algo que não o que era eu, ou que eu fazia ideia de mim mesmo. Não tinha mais testículos, ela os devorara. Só deixara o que lhe interessava.
Devorei seus dedos. Mastiguei seus braços. Arranquei seus seios, engoli. Cortei em mínimos pedaços sua vagina, joguei no chão, algumas baratas e o rato, que há meses estava debaixo da cama, começaram a comê-los. O restante do corpo estraçalhei e bati no liquidificador, com banana e aveia, leite azedo e Farinha Láctea, enchi minha caneca e tomei de um gole.
Depois fui para a varanda ler Alencar.

Gabriel Sant’Ana

Esquina

Ficou o copo.
Sobraram algumas gotas.
Desejo inmesando.


Gabriel Sant’Ana

domingo, 4 de dezembro de 2011

Reumatismo

Roupas molhadas no varal.
Sol de meio dia.
Vento seco de agosto.

Rosto suado de trabalho.
Mãos gastas de vida.
Olhos cansados de catarata.

Entre os dedos ressequidos,
A antiga colherinha com açúcar
Para adoçar o cafezinho.

Sobre a mesa, pães
Do dia anterior, requentados,
Um pedaço de queijo
E a margarina.

Três de açúcar,
Dois de queijo,
Meia de margarina.

No fogo, a panela
Com água fervente.

No balde, a calça
De molho no sabão.

No chuveiro, o neto,
Para a escola.

Na cadeira, esperando.


Gabriel Sant’Ana

sábado, 3 de dezembro de 2011

Arranjo


Nos braços
Em que te tenho
São sempre
Pequenos momentos curtos
Estilhaços de minutos

Numa viagem
Corrida
Sempre estilhaços
São de curtos minutos
Momentos pequenos

Entre freadas
E sinais vermelhos
São curtos momentos
Minutos de estilhaços
Sempre

Entre teus bocejos
E mensagens de celular
Sempre pequenos minutos
De estilhaços curtos
São momentos

Onde não posso
Te tocar
São sempre estilhaços
Momentos curtos
Nas salas
De minutos pequenos

De curtos pequenos
Estilhaços
São sempre momentos
Minutos em que tenho
Tua boca
Nos braços

São sempre pequenos momentos

São sempre
Pequenos momentos
Curtos
Estilhaços de minutos
Em que te tenho
Nos braços
Numa viagem
Corrida
Entre freadas
E sinais vermelhos
Entre teus bocejos
E mensagens de celular
Nas salas
Onde não posso
Te tocar
E ainda a luz
Para acabar
O mísero minuto
Em que tenho
Tua boca

Gabriel Sant'Ana

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Profunda

A aflição do papel de bala de morango preso na garganta. Engasga, toce, sufoca, não morreu a garganta coçante, agitada e vermelha. Ainda não parou de entrar ar nesse tubo, cano humano de ligações interiores por onde passam elementos de espécie variada, desde a água barrenta para matar a sede desgraçada da sua condição de miserável, até o líquido seminal para matar o desejo primordial do coito animalesco. Uso oral burocrático.
Não era papel de bala; mas um pedaço da camisinha sabor de frutas que foi arrancado em um ato, não de amor ou de vontade, mas de selvageria.
Quis engolir.
Ficou o pedaço de plástico gozado na garganta.


Gabriel Sant’Ana (novembro/2011)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Absurdo

- E se não houver uma vida além? E se eu me matasse agora? Não. Não sei o que quero... Se não sabendo o que quero, sei alguma coisa; e sabendo alguma coisa, não sei nada. O que fazer?
- Você deveria procurar um psicólogo.
- Mas o que é esse dever procurar um psicólogo? Por que as pessoas sempre devem fazer alguma coisa? É isso realmente a sua opinião ou é aquilo que você costuma ouvir na televisão e de ler nos jornais?
- Bem, se alguém está com problemas desse tipo, o aconselhável é a procura a uma pessoa especializada e competente que possa ajudá-lo. É o que aprendemos desde a infância. Para sermos educados, vamos à escola, onde há os professores. Se estamos com dor de cabeça, febre, procuramos um médico.
- Sim, para cada assunto, para cada necessidade, há um tipo de solução, que nos ensinaram.
- Por que não procura um padre?
- Quanto tempo não vou à igreja... Por que deveria procurar um padre?
- Ele o ajudaria a entender sobre as questões espirituais. Pelo jeito, você está precisando.
- Quer saber? Não preciso de nada disso. Tais remédios que me propõe são ilusórios, irão servir de alucinógenos: hoje fazem com que não me sinta mal; amanhã estarei muito pior e dependente.
- Não fale isso. Você está passando por um momento difícil, e não quer aceitar o que está acontecendo com você.
- Não. É interessante como seu discurso é tão pretensioso. Quero parar de ser aquilo que desejam de mim, aquilo que tentam me formar. Não. Estou cansado de tantas enganações, de tantas mentiras. Querem vários fiéis, um rebanho, ovelhas. Você irá dizer que vivo nesta sociedade e que é impossível sair desta teia. Reconheço ser tão complicado livrar-me dessas pressões sociais, desse bombardeio de formas de dever ser. Essa minha indisposição, essa minha revolta, é comum também; é uma disposição de espírito criada por essa sociedade... Até onde nossos sentimentos serão sociais? Existe alguma individualidade nisso tudo? Amigo, já está tarde; desculpe tê-lo atormentado.
- Que isso! Volte sempre que desejar.
- Até mais.
Mal o primeiro sai, ouve-se um tiro vindo de dentro da casa.

Gabriel Sant'Ana
(09/01/2010)

Cuidado! Piso molhado!

Entrar em um shopping, andar um pouco, olhar as lojas, procurar algumas promoções, folhear os Best Sellers, depois de alguns minutos comer um Big Mac, comprar uma casquinha de baunilha, um brinquedo ao afilhado, entrar naquela loja americana e ficar mais de uma hora na fila por causa de três barras de chocolate, talvez comprar um anel de ouro, isso talvez seja uma vontade, imaginação, a esposa lhe pede que entre no mercado para comprar algumas coisinhas, que são mais de um carrinho cheio, abarrotado, as crianças querem aqueles biscoitinhos amarelos cheios de vitaminas, mais os iogurtes, talvez ainda dê tempo de chegar a casa e assistir ao filme.
Mas, se ao perambular no shopping, seja quando entrou ou durante esse magnífico passeio, nos deparamos com uma sujeirinha no chão, um papel de bala, um copo de refrigerante entornado, verdadeira poça que fará as criancinhas rebeldes e soltas escorregarem ou alguns idosos quebrarem a bacia ou o joelho, aquele pensamento digno e responsável vem à mente, onde está quem limpe isso?
Existem seres que só aparecem, só existem de fato, só se tornam evidentes em momentos específicos. Por que uma pessoa iria se importar com um faxineiro? Por que ela se daria conta de sua falta? Por muito tempo uma pessoa tem a leve impressão de que um ser de outro mundo faz com que os lugares fiquem limpos, impecáveis. Duendes, gnomos, fadas.
Maurício recebeu a chamada no rádio, deveria ir ao segundo andar do shopping, alguém tinha vomitado no chão. É tão fácil escarrar no chão, vomitar, derrubar coisas... Sempre limpam o que você sujou, sempre consertam o que você quebrou. E o que se ganha com todo esse serviço de merda? Nada. Ganham-se muitas vezes reclamações pela demora, por estar no meio do caminho. De que servia aquele crachá idiota? Pegou a vassoura com o pano molhado e limpou. Como manda a administração, pôs as placas avisando que o piso estava molhado. Ninguém viu que ele havia limpado o piso. Por isso a necessidade daquelas placas em todos os shoppings. Terminou seu domingo como todos os outros, esperando angustiantemente pela segunda-feira, entraria às 18h, iria ao médico tratar daquela tosse irritante, já haviam reclamado de uma tosse demoníaca, conseguiu aquele horário porque iria ao hospital público, que não é perto de onde mora, mas no Centro da Cidade, Hospital dos Servidores do Estado, teria que chegar às 4h para talvez conseguir um encaixe.
Não conseguiu se consultar, o pneumologista estava de licença, os marcados foram remarcados, os que tentaram encaixe que viessem daqui a dois meses. Foi para a Central pegar o trem parador. Chegou ao shopping faltando vinte minutos. Subiu as escadas para ir à saleta da “limpeza”. Bateu o ponto. Desceu as escadas. O elevador era para os clientes do shopping. Foi varrer a entrada. O ar condicionado estava acabando com seus pulmões, os cheiros das lojas estavam aumentando seu sofrimento, os lixos que recolhia para levar ao galpão estavam dilacerando-o.
Trabalhava na área de limpeza há sete anos. Começara como ajudante em um colégio perto de casa. No colégio onde estudara. Conseguiu aquele emprego por causa do tio, que era da cantina. Não saiu da oitava série (hoje nono ano). Desistiu por completo de estudar. Era muito sacrifício, muita loucura ficar decorando fórmulas, regras para passar em provas. Aonde o estudo o levaria? Queria viver, ganhar seu dinheiro para sair aos fins de semana, pegar as meninas.
Adora cinema, seriados. Serial killers. Existem várias formas, maneiras de se matar alguém. Não perderia tempo estudando medicina, de que adianta saber os nomes dos músculos, ossos, veias, se o que importa mesmo é o sofrimento da vítima? Aquele shopping, aquelas pessoas, aquela situação, aquele ar condicionado, aquele médico, aquele trem, aquela sua casa, aqueles seus parentes, seus vizinhos.
Com muito custo conseguiu comprar um MP3, na Uruguaiana, estava um preço barato. Era estranho ele gostar daquela música, Badinerie. Leve, rápida, não como aqueles pagodes melosos, grudentos, ou aquelas batidas fortes, ensurdecedoras, que lhe agravavam a angústia. Mas ela acabava muito rápido. Não se lembrava de como tinha gravado. Talvez tenha vindo de fábrica mesmo. Ouvia muitas rádios, principalmente para se informar, morava longe e, normalmente, escutava alguma notícia de sua terra, algum trem que havia descarrilado, tais incidentes. Não poderia ficar com um MP3 ao ouvido, as normas. Mas ficava com apenas um dos fones.
Não havia fim para toda aquela sujidade. Era sempre a mesma repetição, os mesmos movimentos, pega a vassoura, encharca no balde, espreme, passa no chão, encharca novamente, esfrega ainda mais com a vassoura, põe as placas de aviso. Eram sempre os mesmos números de passos, a mesma hora de almoço, que não era almoço algum, mas um pequeno lanche que trazia de casa, bebia água de um bebedouro que ficava em um canto, aonde só poderiam ir funcionários, quase ninguém ia até lá, tinham como comprar comida melhor.
Muitas vezes sentia arrependimento por não ter se esforçado e ter se entregado à preguiça, à facilidade. Muitas vezes olhava aquelas pessoas bem arrumadas, famílias inteiras comendo, comprando, desfrutando um prazer que lhe era vedado. Não tinha muitos amigos naquele shopping. Conversava com um ou outro; saía muitas vezes com três rapazes mais novos de uma loja de roupas para beber. Nada mais do que isso.
Terça-feira. É preciso de fato eliminar por completo todas as sujeiras desse mundo imundo e podre. Aquele dilúvio deveria se repetir. Mas com água e fogo. Há em algum lugar escrito que toda sujeira será condenada. Começa a entender que a sujeira não é aquilo que se limpa ou que está em determinado lugar contrastando com sua natureza, maculando-a, mas seus produtores.
Começou a analisar cada uma das pessoas daquele lugar. Maneiras de se vestirem, hábitos alimentares, o que compravam. Mas principalmente o que produziam. Seus lixos. Aquela sua rotina imunda se tornou aos poucos muito valiosa. Cada papel picotado, cada nota fiscal, cada resto de comida, cada papel higiênico sujo, cada vômito no chão, cada objeto perdido era um verdadeiro capital. Passou a tomar notas em um bloquinho que comprara no trem, vinha junto uma caneta, foi somente um real. Interessante como tudo era muito igual, uma mesma e única coisa. Podiam ser lixos diferenciados, nota fiscal da compra de uma calça jeans ou uma barra de chocolate, um papel picotado que fora um bilhete de amor, mas que não adiantara, pois a namorada não quis reatar o relacionamento, uma página rasgada de um livro, pois não agradou ao leitor, os papéis higiênicos contêm o mesmo traço, não há diferenças enormes, assim os restos de comidas e os objetos perdidos.
Se não há diferença entre os lixos não haverá diferença entre os seus produtores. É tudo uma questão de observação. Muitos querem marcas pessoais, querem se destacar pelo que vestem ou fazem, mas todos são iguais. Consegue ver isso porque não é percebido pelas pessoas nem visível a elas.
Mas há uma pequena distinção. Não são todos iguais. Os que querem se destacar daqueles que são colocados na invisibilidade são mais lixos que estes. Aquele moleque sujo que mora na rua, aquela faxineira que é desprezada pelo patrão, aquele lixeiro que respira todos os dias seus lixos, eu, não somos mais do que lixos ordinários. Os extraordinários é que são o alvo da limpeza. Eles clamam todos os dias por serem exterminados, jogados fora. Com suas roupas de marca, seus tênis, relógios, computadores novíssimos, seus carros do ano, seus cursos de inglês, espanhol, o diabo, sua pós-graduação, suas viagens a negócio, suas casas de praia, todas essas facilidades que me foram negadas.
Uma mulher, com seus vinte e cinco anos, bem arrumada, calça e blusa da Guess, um tênis All Star, cheirosa, um perfume do Boticário, olhos e cabelos castanhos, lisos, acabou de sair do salão, nas mãos um sundae de chocolate, aproxima-se dele. Senhor, onde fica o banheiro? Vira-se para ela, admirado por alguém ter lhe dirigido a palavra. Venha comigo. Você deu sorte, menina, estou indo para lá. Ela o seguiu. É nessa direção mesmo? Quer saber mais do que eu, que trabalho aqui há anos? Desculpa. Ele a leva a um lugar aonde só vão os funcionários, mas quase ninguém vai para aqueles cantos. Ali há uma porta, que é um banheiro. É aí o banheiro. Mas isso não está certo, o senhor me trouxe para um lugar fora do shopping. Nós continuamos nele. Foi se aproximando dela, aquele cheiro de mulher nova, talvez ainda virgem, com perfume, deixava-o. Você é muito bonita... atraente... E vai tocando seu rosto. Pare com isso... vou gritar! Você não vai gritar. Quem é você? Sou quem você nunca deveria ter dirigido a palavra! Desabotoa a calça, tira sua blusa. E sem gritos! Enfia em sua boca alguns papéis que acaba de tirar do bolso. Notas fiscais que ficaram da limpeza do dia passado.
Agora devo dar um fim em você. Como tudo o que está aí, você é mais uma coisa, um resto, um lixo. Tira-lhe os olhos. A vida foi muito bela para você; de que adianta agora continuar a enxergar esse mundo de podridão? Duas bolas de gude para o cachorro do vizinho! Ela não gritava, pois ele tinha entupido sua boca ainda mais, com papéis higiênicos da limpeza passada. Esse corpo tão belo poderia ter sido melhor aproveitado, mas você escolheu vesti-lo com esse lixo de roupas caras, perfumes caros... Nunca lhe passou pela cabeça quantas pessoas se tornam nada trabalhando na confecção dessas roupas para que vocês sejam ilustres pessoas bem vestidas? Quantas vezes você já jogou esse corpinho no lixo, dando ele para seu namoradinho safado, nojento, que transa com mulheres mais imundas que você? Havia um saco preto de lixo naquele banheiro. Ensacou o corpo e o colocou dentro do carrinho do lixo.
O lugar onde se colocavam os lixos ficava do outro lado e era necessário passar por dentro do shopping para chegar. Limpou as mãos e o rosto rapidamente, algumas manchas de sangue ficaram na roupa e na bota. Quem perceberia? O celular da garota ele tinha martelado repetidas vezes. Destruído. Iria vender aqueles restos na feira de sábado. Deveria valer alguma mixaria. Foi andando calmamente pelo corredor cheio de clientes. Os seguranças nada notaram. Apesar do mau cheiro. Despejou o saco naquele monte de sacos, daqui a meia hora viria o caminhão buscar aquilo tudo.
A semana transcorreu de costume. No domingo, antecedendo o Natal, shopping lotado, famílias fazendo as compras, era normal que crianças se perdessem dos pais, umas sensação de liberdade não estar de mãos dadas, ir aonde bem entendesse. Moço, me ajuda... me perdi dos meus pais e dos meus primos. Estava com o rosto coberto de lágrimas, suando, tinha corrido demais, o pai estava em uma loja de roupas, ele quis sair, não vá muito longe, fique perto, na loja ao lado houve uma promoção relâmpago, pessoas correram para comprar o máximo que seus créditos lhes permitiam, não percebeu que estava sendo empurrada para mais longe da loja onde os pais estavam, foi parar no primeiro andar, estava no segundo. Sim, meu filhinho, não se preocupe, o tio vai ajudar você. Vem comigo. Que lugar é esse? Quantos anos você tem? Tenho nove anos. Como se chama? Jorge. Seus pais, quem são? Minha mãe morreu, estou com meu pai e a namorada dele... Sua mãe morreu de quê? Ah tio, deixa pra lá... Percebeu que aquele garotinho estava escondendo algo. Estavam em um outro canto do shopping. Havia dois cachorros acorrentados. Eles eram soltos no estacionamento quando o shopping era fechado. Você não é um garoto bonzinho, sabia que Papai Noel não gosta de crianças desobedientes, mentirosas e malvadas? Papai Noel não existe! É verdade... Mas você já ouviu falar do Homem do Saco? Quem? Vem aqui, Jorginho... vem conhecer o Ralph e o Boby... Eles estão com raiva, moço? Estão com fome; chega mais perto, não fique com medo. Tomou uma corda e amarrou Jorginho. Para ele não gritar, colou com fita adesiva sua boca. Pegou os cachorros pela corrente. Os olhinhos de Jorginho se esbugalharam de pavor. Se você nunca ouviu falar, eu sou o Homem do Saco! Percebi que você tem um ar muito mau... você deve ter feito alguma coisa muito feia, moleque idiota e mimado! Deu três chutes na barriga dele e dois pisões no seu rosto. Come, meninos! Anda! Os cachorros estraçalharam o garoto. Ficaram saciados. Ele os prendeu novamente. Ficaram alguns restos de perna, braços, cabeça. Ensacou tudo no saco de lixo. Coisa engraçada, uma criança desse tamanho com ares de adulto, devia ter algum problema... Hoje em dia essas crianças não são mais crianças, são verdadeiros monstrinhos... Era mesmo um lixinho de nada, um papel de chiclete... Colocou no carrinho e levou para o galpão.
Sentia um prazer diferente ao fazer essa limpeza. De início sentiu asco de si mesmo. Matar um semelhante? Está escrito que não se deve matar. Deve-se fazer justiça. E não são meus semelhantes. São desprezíveis, imundos por dentro, seus perfumes caros, os brilhos de suas joias, relógios, suas roupas bem passadas, seus cartões ilimitados, tudo exala um fedor repugnante, uma sujeira delicada, aparentemente limpa.
As dores nas costas pioraram, sua tosse ficou mais intensa, muitas vezes saía sangue. Não conseguiu se consultar. Seu superior já tinha lhe dado aviso. Daqui a duas semanas seria demitido. Quem se importava com sua saúde medíocre, com sua casa cheia de infiltrações, seu quarto desarrumado e pequeno, sua cama quebrada, o cheiro de mofo em toda a casa, que vivesse sozinho, a geladeira velha que pegou na rua, vazia, com leite azedo, algumas frutas mofadas, pão de forma embolorado. Odiava quando os outros o olhavam com pena. Ele não era coitadinho. Gente do seu tipo vivia muito tempo. Seu tio não morreu aos oitenta, vivendo também miseravelmemte?
Interessante como sentia essa vontade de limpar no shopping. Perto de sua casa havia gente rica, não riquíssima, mas melhores em condições que ele, mas não desejava se ver livre desses lixos, tinha a certeza de que os eliminaria no shopping, não essas pessoas em específico, mas parecidas a essas, iguais, lixo como sempre.
Só descartou aqueles dois. Não tivera tempo de fazer mais, pois foi demitido na segunda semana depois do Natal. Sentiu um pouco de arrependimento. Parece que não cumpriu com o dever. Não se deu por satisfeito. Iria procurar outro emprego. Daria um jeito naquela tosse miserável. Estavam abrindo um mercadinho perto de sua casa, conhecia o futuro dono, certamente lhe daria uma força.
Foi para casa. Sentou no sofá encardido, velho, algumas baratas roíam um farelo de biscoito cream cracker da noite passada. Estava comendo uma coxinha de galinha e bebendo um refresco de maracujá que tinha comprado no Amigão. Ligou a televisão para ver o noticiário. Estão desaparecidos Karla Jones, jornalista, 25 anos, e Jorge da Silva, de nove anos, seus familiares dizem que o último lugar em que estavam era o shopping. A Polícia está fazendo buscas. Qualquer informação, liguem para o Disque Denúncia, a sua identificação será mantida em sigilo. Quem se importa com isso? Coisa normal... isso acontece todos os dias... pessoas desaparecem sempre... que ideia... Desligou a televisão e se recostou no sofá para cochilar.

Gabriel Sant’Ana

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Brinquedinhos

Jorginho adorava brincar no jardim de casa. Quase todo mês, seu pai lhe dava brinquedos em miniatura, no estilo do Lego, mas eram de madeira e não tinham cor ou rostos. Brinquedos sem nenhuma expressão. Segundo o pai, isso iria fazer com que o garoto desenvolvesse a criatividade e a imaginação.

Estava em casa, no feriado, tempo chuvoso, os coleguinhas desmarcaram o jogo de futebol na pracinha. Pegou sua coleção dos brinquedinhos de madeira para se distrair. Estava em casa com a mãe. Seu pai tinha ido ao mercado. Havia ligado há vinte minutos avisando que demoraria um pouco, pois estava entupido e as filas quilométricas.

Como odiava aqueles brinquedinhos! Como seu pai o irritava tratando como se ele fosse um bebezinho!

Não podia ir ao jardim, chovia bastante. Foi brincar no quarto dos pais. Fez como se fosse uma cidade de brinquedinhos em cima da cama. Sua mãe se irritaria certamente. Chamou por ela. Ao ver sua cama desarrumada, deu um grito histérico. Jorginho tentou acalmar a mãe. Ela foi para lhe dar uma chinelada. Ele pegou o pé da cama, que havia quebrado, e bateu forte na cabeça da mãe.

O pai fora ao mercado às 17h. e chegou a casa às 19h. Estava acontecendo alguma festa em casa? Cadê a mulher? Não estava na cozinha ou na sala. Papai, vem aqui pro quarto.

Sobre a cama, perfurada, com quase todos os bonequinhos de madeira enfiados no corpo, os dedos transformados em prédios, os cabelos arrancados eram fios de alta tensão, a barriga era uma espécie de baía, da vagina saíam vinte bonequinhos de madeira, os dentes estavam colados na parede para parecerem estrelinhas.

Estático, sem palavras ficou ao ver a cena.

Agora sim, papai. Você entende? Vamos brincar?

Gabriel Sant’Ana

Ungues

I

O espírito do homem suporta a doença,
Mas quem erguerá um espírito abatido?
Provérbios 18, 14

Toda vez que virava as páginas dos livros, irritava-se com suas próprias unhas. Doentiamente, tentava não marcar as folhas. Era descaso, falta de educação aquelas marquinhas finas nos cantos das páginas. Além da sujeira, que, por mais que tentasse, acabava se encrostando.
Odiava, ao coçar a cabeça, as feridas que lhe faziam as unhas. Nunca cicatrizavam. Parecia não resolver, por mais que tomasse banho, lavasse com shampoo e condicionador, anticaspa, a coceira nunca parava. Não era só na cabeça, mas nos braços e nas pernas. Já fora ao médico, piolho não tinha ou qualquer doença de pele.
Olhava para as unhas dos pés, não o incomodavam. Mas as das mãos. Tinha parado até de apertar as mãos das pessoas, de acenar, de acariciar a esposa, de segurar seu filhinho. Era mais do que nojo.
Cortava as unhas compulsivamente, de três em três dias. Lavava as mãos sempre com detergentes, sabão em pó, sabonete, cloro, água benta. Não usava tesourinha de unha, mas aquele cortador vagabundo que se vende no trem a cinquenta centavos. Lixava as unhas. Esfregava-as com a esponja da cozinha. Estava perdendo as digitais e começava a ter problemas no trabalho, pois, com muita dificuldade, batia o ponto.

II

Tenham nos lábios o louvor de Deus,
E nas mãos a espada de dois gumes
Salmos 149, 6

No quarto, com as luzes apagadas, sete velas acesas, de frente para o espelho, nu, com as unhas grandes, sujas, arranhava-se por inteiro e sentia um misto de prazer e ódio com o sangue e a carne e os pelos entre as unhas, e o sangue escorrendo por todo o corpo. Não sentia dor, nem lágrima saía-lhe dos olhos. Estava consciente do que fazia. Sua mulher e o filho não chegariam nesse dia. Tinha escrito uma carta odiosa, marcada com as unhas. Deixou-a sobre a mesa da cozinha, toda arranhada num acesso de raiva.
O facão de cortar carne ao lado direito, limpo há duas semanas ritualisticamente pelas mãos dentro de luvas de couro. Pegou o potinho com as unhas guardadas há quinze anos, tomou aleatoriamente uma delas e fez com ela o sinal da cruz.
Com a mão direita, sem luvas, tomou do facão e extirpou a esquerda com um golpe só. Com os dentes, começou a morder ferozmente a direita, arrancando as carnes, principalmente os dedos. Após isso, mastigou os restos do que se chamavam mãos e dedos e os engoliu.
Passada meia hora do ritual, sentiu um forte ímpeto de acabar de vez com as unhas dos pés. Devorou cada dedo. Durou duas horas o ritual e o finalizou dando glórias ao Criador, cujas unhas e dedos não eram mencionados no Livro.

Gabriel Sant’Ana

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Côncavos e convexos

Toda aquela sua irritação não adiantara para muita coisa. A mulher não deixou de sair para o cinema com as amigas para ficar em casa lhe fazendo companhia ou na cozinha lhe fazendo algum lanchinho para o final da partida do Campeonato Brasileiro, que passava na televisão.
Já estava há muito tempo querendo dar o grito de independência, ou de alforria. Estava apenas esperando uma oportunidade melhor.
Há cinco anos de casados mais sete de namoro que vivia subordinada a seu querer, a suas vontades mais mesquinhas e risíveis; há anos não experimentava o simples ato de respirar o ar e o de olhar as toscas plantas que ele tinha plantado no jardim. Sua vida patética tinha se restringido à tríade cama-mesa-e-banho.
Tudo culpa de sua falta de vigilância e de rigor. Como não tinha percebido que já não era mais a mesma? Que já não obedecia do jeito de antes? Era necessário fazer alguma coisa. Talvez estivesse saindo com alguém do curso. Vagabunda. Safada.
Comprou-lhe um celular e mandou que, de dez em dez minutos, ligasse para ele, avisando o que estava acontecendo. Obrigou que ela lhe desse as senhas dos e-mails. Estava apenas cumprindo com os deveres de marido e protegendo-a de possíveis perigos.
O sufoco da tríade de que se livrara tinha voltado. Sentiu que as mãos dele agarravam e pressionavam todo seu corpo, seu pescoço, suas pernas, seus braços, seus pensamentos, inclusive. Com quem você conversou hoje? Alguém deu em cima de você? Algum homem te tocou? Não vi você sair de casa, com que roupa você está vestida? Está de batom vermelho... o que lhe disse sobre isso?! Foi de saia?!
Conseguiu sair de casa, enquanto ele estava dormindo, sem fazer barulho algum. Colocou sua melhor calça jeans, uma bota de couro, uma blusinha justa de seda, a jaqueta preta. Estava chuviscando. Tinha marcado com as amigas de estarem duas horas antes da sessão. Encontrariam-se em frente ao McDonald’s.
Chegou. Compraram casquinhas de baunilha. Foram conversando em direção ao cinema.
Como você está bonita! O que houve com você? Por que esse rosto assim? Por que não fala nada? Como pôde se esquecer? Poderia ter esquecido sua identidade, CPF, tudo. Menos o celular! Que ficou em cima da mesa da cozinha. Como isso foi acontecer? Onde estava com a cabeça? Por que não nos responde? Se pegasse um táxi, talvez conseguisse pegar o celular e ele ainda estivesse dormindo... Vagabunda. Esqueceu de propósito o celular. Está com algum homem...
Viu o recado que ela tinha deixado no braço do sofá. Estou indo ao cinema com a Karla e a Fabíola. O filme é das 14h. às 16h. Estarei em casa às 17:45h. Te amo! Idiota, ainda começou a frase com um pronome oblíquo... Ela que volte para pegar o celular, não vou ao shopping ensinar a ela como deve se comportar.
Não pegou o táxi. Não voltou para casa nesse dia. Ele pegou o celular e foi ao shopping. Não a encontrou lá. Ficou nervoso, preocupado. Onde ela estaria? Ai de mim quando ela chegar... Por que fui pegar no sono? Por que não aceitei vir com ela? Poderia ver a reprise do jogo mais tarde... Até que o filme não seria tão ruim assim... Puxa vida... Como vou fazer para achá-la?
Voltou para casa com um enorme peso na consciência. Ela com certeza iria fazer um escândalo. E ele não teria nenhuma justificativa para dar. Estava errado. Está certo que muitas vezes ela aumentasse o que ele fazia de errado; mas ela está correta em cobrar dele, em exigir.
Todo mês, ela obrigava que ele lhe desse mil reais para comprar roupas, fazer lanches, distrair a cabeça. Não quis se casar com ela? Ele que fizesse suas vontades. Era esse o contrato. Se não fizesse o que ela mandava, cuspia-lhe o rosto, xingava palavrões e houve até água fervendo no rosto. Já foi até queimado a ferro. Ele pedia perdão, ajoelhava-se, beijava seus pés, implorava sua amor. Que amor? Ele não quis arrancá-la da casa da mãe? Arcasse com as despesas e obrigações. Ele devia sim fazer a janta, devia sim lavar as roupas. Ela já estava cansada, já tinha feito muito na casa da mãe. Agora ele que a servisse.
Exigiu que ele ligasse para ela e lhe desse os mínimos detalhes do seu dia de trabalho. Que o celular nunca ficasse descarregado. Ele só deveria sair com amigos, nunca amigas. Homem não tem amizade com mulher, tem é interesse, vontade de ir para cama com ela. Ou acha que ela era idiota? Quer assistir ao jogo de futebol, que assista! Não deixaria de ir ao cinema com as amigas, que não se chamam Karla nem Fabíola, mas Carlos e Fábio. Sim. Homens. Iria sair novamente no próximo sábado. Já estava cansada de ver o mesmo filme com ele, sempre as mesmas cenas, as mesmas falas. Ela precisa de outra história, ou de todas ao mesmo tempo.

Gabriel Sant’Ana (2011)

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...