quarta-feira, 25 de setembro de 2013

oitavo dia, ou a tentação na criação

Com uma das mãos potentes faz deitar a noite silente, para fazer surgir, vigorosa, a manhã esplendorosa com sua destra. Mais um dia. Acordam suas criaturas entoando mais um cântico de louvor e gratidão pela beleza da vida. A respiração lenta mas constante fazendo pulsar o corpo embrutecido pelo cansaço do dia anterior. Mais um dia. As mãos preparam o matutino alimento que prepara os membros ao trabalho futuro. Uma boca diz bom dia, outra boca responde bom dia. Beijos e carícias se trocam antes da partida. Um breve e corrido pensamento se eleva pedindo proteção.

Com sua sinistra desgastada faz deitar a potente manhã, e com seus dedos faz vir a fria noite. Retornam suas criaturas, lentas, olhos semicerrados. Mais uma noite. Homens se desfazem da vestimenta, água morna escorre pelos corpos suados, sabonete tangenciando a fragrância doce na pele. A janta. A sobremesa. A novela costumeira. Após esses rápidos momentos, vão os corpos para a cama se sobreporem em atos. Torpor. Sono.

Faz a noite silente retroceder e dar lugar à manhã potente de calor com suas mãos potentes. Percebe que seu espírito está enfadado. Seus ouvidos e olhos estão dormentes. Seu vigor desaparecendo das veias. Decide percorrer mais uma vez os cantos da criação, procurar alguma novidade. Vaidade, tudo é vaidade. Solitário decidira ser antes que os tempos fizesse diretrizes do viver. Por que me abandonei? Não existe filho, pai, mãe ou irmãos; não existem companheiros, seguidores; não existe outro igual a si mesmo. Todas as coisas são suas. Não pode criar alguém que lhe seja igual. Não pode sentir a alegria de conviver. Vive apenas o que é. É incapaz de sentir a perda. A dor. Talvez quisesse trocar tudo pela vontade daquela que dançasse belamente; mas não existe quem lhe agrade com danças, pois não sente. Não criou para si a relação.

Dizem muitas coisas, que se enraivece, que é egoísta, que é amor, que é misericódia. Mas temem pensar que é solidão, silêncio, insensível. Não construíram uma teologia ou metafísica do desgaste. Daí tal ser não conseguir se compreender, pois não existem discursos teóricos sobre essa sensação que antes dos tempos lhe amargura o interior. Se é o salvador, que se salve a si mesmo. Médico, cura-te a ti mesmo.

E naquele momento a serpente lhe retruca: estás condenado a seres o teu próprio fardo, todas as tuas invencionices te serão um tormento eterno, verás se levantar do pó um homem e no dia seguinte voltar de onde veio, assistirás mudo a toda autodestruição, sentirás neste teu interior o mais profundo cansaço de todas as coisas, mas não terás a oportunidade de terminares com tua própria vida, não conseguirás como o fazem tuas criaturas, deverás te alimentar de teu próprio dissabor, assim está escrito no livro das Lamentações de Jeremias: que esteja sozinho e calado, quando cai sobre ele a desgraça (cap. 3, vers. 28). Teu próprio eco te condena com tuas próprias palavras. E assim deverá ser pelos séculos dos séculos sem fim.


Gabriel Sant'Ana

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

cena matinal

Respiro de modo breve e atento. É cedo. Ainda não despontou o sol com seu calor e luminosidade.

Já saem gentes de seus acalentadores buracos num ritmo raivoso, jogando sobre o corpo distenso do sono água fria despertadora, agressão sensorial de uma frieza invisível sempre permanente durante os primeiros segundos, mas ainda uma promessa futura de tornar relaxado o corpo batido pelo labor.

Entra no ônibus via baixada. Decadente cai sobre o espírito um ar que paira constantemente sobre as vias expressas e ferroviárias; constantemente perfurando limites urbano-corpóreos.

Fétido espírito embriagador de pele, sovaco, mãos, unhas, lábios, fumos perfumando em ritualístico movimento balouçante de ônibus e trem.


Gabriel Sant'Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...