sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Patinação no gelo


Completamente fora de controle rodopiando na pista de patinação no gelo, a felicidade contagiante estampava-se e se irradiava pelos seus olhos, seus lábios. Patinava ora rápida ora vagarosa. Aquela gostosa sensação do vento sobre seu rosto, espalhando seu cabelo para os lados. Sua mãe a fotografava feliz, não perdia um movimento sequer, seu dedo atento aos rápidos instantes da curva da filha, cliques rápidos. E lá está uma boa imagem capturada! Magnífico!
Foi o minuto de procurar alguma coisa na bolsa para perder o triste momento da queda da filha. Como não foi o suficiente responsável para estar atenta à filha?
Parece ter torcido o pé, ou algo do gênero. Lágrimas escorrem de seu belo rosto, seus lábios tremem e sua língua produz um som pavoroso, todos ali param a sua prazerosa brincadeira, ficam paralisados diante da cena.
Não foi suficientemente responsável, não foi fiel à promessa que fizera a si mesma de em todos os momentos de alegria, tristeza, dor, estar com a câmera direcionada ao fato e capturá-lo, guardar para a recordação.
Assim começara quando pariu a filha, fez que o marido entrasse na sala de parto para filmar tudo desde o início, que não saísse sequer para ir ao banheiro. Filmou e fotografou os primeiros passos, a primeira papinha, o primeiro espirro, a primeira fraldinha suja, as primeiras dores de barriga, as quedas na escada, a festa de quinze anos, de dezoito, de vinte e um, os beijos com o namorado na sala da casa, a filha cochilando no sofá, a filha tomando banho, fazendo suas necessidades.
Já tinha mais de cem álbuns de fotos, mais de duzentos vídeos da filha. Todas as quedas, todos os aniversários dela e de seus colegas, as festinhas da escola. As fotos da filha no jardim zoológico. Como foi linda aquela época. A filha debaixo de uma árvore, tomando água de coco, fazendo pose para a foto.
Mas pelo descuido de ir procurar na bolsa o pente, ou o celular que tocava. Que erro irreparável. Não, não. Mas você sabe como foi que a minha filha caiu? Nossa, foi terrível, ela estava vindo de costas e esbarrou naquela garotinha ali de blusa vermelha... Ah sim, obrigada.
A filha continua a cair em pranto. Alguns tentam acudi-la. Dói demais a perna. Foi uma queda brusca. A mãe invade correndo a pista de patinação. Todos ficam comovidos. De fato era muito cuidadosa aquela mãe. Abrem espaço para que ela possa ajudar a filha, fazê-la levantar-se. Minha filha, ande logo, pare com isso, já já a gente vai resolver isso, mas se levanta logo desse chão, sua querida e zelosa mãe não conseguiu fotografar nem filmar o instante em que você caiu, anda logo, se levanta, eu quero que você se levante agora, anda, para de choros e seja obediente, se levante, foi só uma quedinha, se levanta e retorne ao lugar onde você estava antes de patinar de costas e esbarrar naquela menininha ali de blusa vermelha, ainda bem que ela não se machucou, imagina, uma menininha de cinco anos toda quebrada, anda logo, ei moço, vem aqui, é, vem aqui, levanta a minha filha, estão olhando o que, isso, levanta, com cuidado meu amorzinho, anda minha filhinha, isso, que lindinha, sua mãezinha vai voltar pra lá e filmar tudinho do jeito que foi, não fica assim não, depois nós vamos fazer um lanchinho, deixa que eu pago, não precisa gastar a sua mesada, pronto, pronto.
Ela retorna ao local privilegiado em que daqui alguns minutos irá filmar com o máximo de perfeição o momento exato da queda, apesar de ser uma repetição, mas tudo sairá do jeito que foi há cinco minutos atrás, assim deve ser. Anda logo minha filha, pode começar. Todos se sentem também, de alguma forma, obrigados a retornarem às posições em que estavam naquele momento. Movidos pelos gritos e ordens daquela mãe refazem os movimentos, os giros, a filha machucada, dolorida, algumas lágrimas nos olhos e baixos gritinhos, refaz o caminho, esforça-se para patinar de costas, a mãe lhe grita que mude a feição, que não aparente dor alguma, a filha esboça um sofrido sorriso, ficou bem, continua a patinar de costas, a menininha de blusa vermelha patina mais rápido em direção à filha, assim que aconteceu, a menininha patinava sem prestar atenção às pessoas que vinham em sua direção.
Magnífico. Não tão perfeito como deveria ter sido. Mas se gravou. Agravaram-se as dores, intensificaram-se os gritos e choros e lágrimas. Não chore tanto assim, anda logo, vamos agora fazer um lanche e depois eu te levo no médico, ficou ótimo, meu amor, ótimo, lindo, você já devia estar acostumada com essas coisas, é assim essa vida, eu hein, não se lembra daquela vez no clube, que você levou uma bolada no jogo de vôlei e que eu não consegui filmar porque eu estava comprando uma garrafinha d’água, então, o que eu fiz para você não perder aquele momento, para ele não ser esquecido, então, viu, é tudo para o seu bem, meu amor, mamãe te ama muito, viu, vamos lá, comer aquele delicioso hambúrguer...

Gabriel Sant'Ana

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