terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Porta giratória

Deposite seus objetos metálicos no compartimento ao lado a fim de evitar maiores transtornos ao adequado funcionamento do banco.
Seu rosto parece aparentar um leve transtorno. Suas mãos, nervosas, vasculham o interior da bolsa. Retira todos os objetos, coloca-os no lugar próprio. Retorna à entrada.
Apita novamente o sinal. Deposite seus objetos metálicos no compartimento ao lado a fim de evitar maiores transtornos ao adequado funcionamento do banco.
- Senhora, bom dia. Por favor, dê um passo atrás e certifique-se de que não há mais objetos metálicos com a senhora.
- Mas, meu filho, já tirei tudo de dentro da bolsa.
- Por gentileza, senhora, dê mais uma verificada. Saia do caminho, por favor, para que as pessoas que estão atrás possam entrar.
Mesmo sendo a segunda semana do mês, é grande o movimento naquela agência. Alguns começam um burburinho abafado que se faz ouvir, outros apontam para a senhora e reclamavam pela sua demora. Não estavam ali à toa, precisavam pagar as contas atrasadas, abrir conta poupança, conta corrente, falar com o gerente sobre um futuro investimento, reclamar da demora da entrega do cartão de crédito.
Novamente o sinal apita. Deposite seus objetos metálicos no compartimento ao lado a fim de evitar maiores transtornos ao adequado funcionamento do banco.
- Senhora, mais uma vez, por favor.
- Meu querido, já depositei tudo ali naquela caixinha...
- O dispositivo de segurança não se engana. A senhora está portando objeto metálico.
- Ai meu Deus... Talvez...
- Dê um passo atrás para as pessoas entrarem.
- É... desculpe... não precisa me empurrar, minha filha... eu também tenho o que fazer... Meu querido, por favor...
- O que a senhora tem a dizer? Fale somente o indispensável.
- É que já faz um tempo eu fiz uma cirurgia na perna...
A música ambiente é incapaz de acalmar os ânimos.
- Anda logo, velha!
- Neste caso, senhora, irei chamar o médico do banco para resolver seu problema.
- Como?!
- Acalme-se.

**
Duas semanas se passam. Ainda que atarefado, o neto de dona Leonor vai ao Grande Banco. É seu costume estar com o mínimo de objetos nos bolsos, para evitar reclamações e agilizar os afazeres nos bancos.
- O senhor irá fazer o quê? – pergunta a assistente a alguns metros da porta giratória.
- Preciso falar com o gerente.
- Que assunto?
- É sobre um objeto da minha avó que ficou no banco.
- Perdido?
- Não.
- Tome sua senha. Vire à esquerda, siga reto, o senhor encontrará uma porta. Atenção, pois seu detector é mais sensível que aquela ali.
- Ah... minha avó já teve muito problema com ela...
- Então, ao entrar na sala, aguarde seu número aparecer na tela.

**
Apita o sinal. Retire qualquer tipo de objeto para sua própria segurança e melhor atendimento no Setor de Serviços Superiores.
Aproxima-se o guarda.
- Mas já retirei tudo dos bolsos.
- Senhor, o anel.
- É minha aliança.
- Por gentileza.
- Já tenho há anos... não irá sair...
- Neste caso, deixamos ao critério do gerente. Só um minuto enquanto preencho o relatório que o senhor deverá entregar ao gerente.

**
- Bom dia. Em que posso ajudá-lo?
O gerente, com a cabeça enfiada em um grande livro, ou livro de ata, escreve algo.
- Vejo que o senhor está com o relatório. – estendendo-lhe as mãos.
Preenche no caderno as informações que estão no relatório.
- Assine aqui neste espaço em branco.

Ao dia 21/08/2013, na sala do Setor de Serviços Superiores, eu, Doutor Abel Marins Filho, Gerente da Ala B do referido Setor, às 14:31:15, recebo o cliente de senha 21XC7P para tratar do assunto Objeto Perdido no Banco. Ao entrar o referido cliente na Sala de Espera do Setor, fui informado pelo Guarda número 30 que o cliente portava no dedo uma aliança de casamento e que caberia a mim, Gerente da Ala B do Setor de Serviços Superiores, julgar o procedimento a adotar, visto que o dispositivo de segurança havia tocado ao se pôr o cliente dentro da porta giratória a fim de entrar na referida sala de espera. Julgo, portanto, que, conforme os regulamentos do Grande Banco, deve o cliente de senha 21XC7P ser atendido e receber as devidas informações a que veio em busca e, após isso, ser encaminhado à Sala do Setor de Procedimentos Cirúrgicos, onde receberá o devido atendimento pelo Gerente Médico Senhor Doutor Isidoro Cavalcanti.

- Mas por que eu devo ir a esta sala desse médico?
- Regras de Segurança e Vivência do banco. O que o senhor veio tratar comigo? Sobre um objeto perdido nas dependências do banco? Era seu?
- Não. Da minha avó.
- E o que seria este objeto?
- Acho que é melhor eu relatar o que aconteceu... Foi na porta giratória da entrada, ela colocou todos os objetos de metal na caixa, mas ainda assim o sinal tocava, ela então se lembrou de que havia feito uma cirurgia na perna...
- Sim... sim... Foi recente isso... estou me lembrando sim desse caso... espere um pouco, parece que hoje mais cedo estava lendo um relatório sobre isso.
Abre a gaveta e retira um envelope.
- Aqui está. Certifique-se se é esse o caso.


Relatório 23
Ao dia 07/08/2013, na Sala C do Setor de Procedimentos Cirúrgicos, eu, Doutor José Gomes Maia, às 13:23:30, atendo à cliente de senha 89CR0, que atende pelo nome de Leonor Alves de Andrade Costa. Foi mandada à minha sala por portar objeto metálico que impedia o bom funcionamento do banco e que estava este objeto dentro da perna da referida cliente. Ela me explicou que havia passado por uma cirurgia na referida parte do corpo. Porém teve de se submeter a mais uma cirurgia nesta Sala em função do cumprimento das Regras de Segurança e Vivência do Grande Banco.
Às 15:00:00, dou por satisfatório o procedimento cirúrgico de Retirada de Objeto Metálico Interno. Foi necessário, além disso e conjuntamente a esse procedimento, um segundo procedimento, Retirada de Objeto Externo. A paciente se mostra bem após a cirurgia e deve sair da sala para realizar o pagamento da conta de luz, recebendo de mim uma senha prioritária, o que lhe facilitará o atendimento no caixa.

- É ela mesma...
- E o que o senhor gostaria de saber?
- É que minha avó precisa da perna...
- Nada mais do que justo.
- Eu vim aqui para pegar de volta.
- Certo. Você está com o número do protocolo do pedido?
- Não sabia nada disso...

- Você deve ir ao Ministério da Saúde e pedir para que façam o Relatório de Pedido de Devolução de Partes. Após isso, darão ao senhor o número do protocolo. O Grande Banco receberá no mesmo instante uma cópia desse Relatório e o número do protocolo, que o senhor deve nos trazer para conferirmos e darmos baixa do objeto que ficou conosco. Tendo entendido o que o senhor deverá fazer, encaminhe-se à Sala do Setor de Procedimentos Cirúrgicos. Lá o senhor já sabe o que deverá ser feito, isso é muito óbvio, o que me isenta de maiores informações. No entanto, o senhor deve saber que, se for realizado o Procedimento de Retirada de Objeto Externo, terá duas semanas a contar da realização do procedimento para pedir a devolução do objeto, segundo o relatório e o número do protocolo do Ministério da Saúde, sendo que isso deverá ser feito por outra pessoa da sua família ou cônjuge, com os devidos documentos de identificação e cópias autenticadas. Boa tarde.

Gabriel Sant'Ana

sábado, 23 de novembro de 2013

Chupe, e deixe chupar

Sugo cada vez mais. Sugava forte. Uma ânsia potente pelo esvaziamento. Mas não é só sugar. Me agrada não este leite, não este bico rosado, não este seio farto e pesado; me agrada mordiscar. Ainda sem muitos meios para lhe aumentar a dor, servem apenas a pressão dos lábios e a gengiva, além das pequeninas e frágeis mãozinhas. Ai meu amor, assim não! Diminui a intensidade e pressão, para daqui a poucos e breves segundos reincidir. Ai querido, calminha... De leve dá uns tapinhas nas costas temendo que engasgasse com tão precioso líquido.
Não passou de três semanas para que a fonte secasse. Como alternativa me oferece uma mistura de cor parecida que custa uma parte do salário do progenitor.
Tanta fidelidade e amor, tanto atento cuidado de ferver a água, misturar o pó lácteo, encher a mamadeira, tomar-me em seus braços e enfiar na pequenina boca algo parecido com o bico do peito. Não consegue aceitar ter acontecido aquilo. Todas as noites, ouço ambos gritando, sinto vibrando as paredes, coisas caindo. Todo tempo, de hora em hora, no mais puro e perfeito ritual de cuidado, me alimenta, dando agora tapas cada vez mais fortes nas costas, que passam a ficar marcadas, mas até agora ele ainda não percebeu o que acontece quando vem realizar a sua oferta diária.
Ai caralho! Filho da puta! Escorre pelo rosto a mistura ainda saída do forno. Filho da puta! O que você quer?! Não desiste da tarefa. Insiste em alimentar, em prover, em forçar, em cumprir com a mais maternal das tarefas. Persisto jogando-lhe de volta no rosto aquilo.
Mas sinto algo esquisito na barriga... Não... Isso de novo... Golfo nela toda, cago todo o chão com aquele azedo ardente. Desgraçado!
No auge de sua angústia atira a mamadeira, o chinelo, o ferro de passar.
Joga a criança no chão, desfalece após chutes, gritos e choros.


Gabriel Sant'Ana

sábado, 2 de novembro de 2013

conversa

- já não consigo me lembrar de hoje.
- tente se esquecer de querer se lembrar.


Do livro das mínimas sapiências




Gabriel Sant'Ana

sábado, 12 de outubro de 2013

E.E. (Escola Estadual)



Minúscula súmula para melhor uso de torneira, ou bica, ou bebedouro. Mudam-se os usuários, permanecem as atitudes, esforça-se o plástico de regra do bom uso do aparelho por manter-se ainda que água e unhas vorazes deteriorem sua sobrevivência.





(Legenda da foto acima) Sede. Gadumano discente. Gadumano docente.




Gabriel Sant'Ana

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

oitavo dia, ou a tentação na criação

Com uma das mãos potentes faz deitar a noite silente, para fazer surgir, vigorosa, a manhã esplendorosa com sua destra. Mais um dia. Acordam suas criaturas entoando mais um cântico de louvor e gratidão pela beleza da vida. A respiração lenta mas constante fazendo pulsar o corpo embrutecido pelo cansaço do dia anterior. Mais um dia. As mãos preparam o matutino alimento que prepara os membros ao trabalho futuro. Uma boca diz bom dia, outra boca responde bom dia. Beijos e carícias se trocam antes da partida. Um breve e corrido pensamento se eleva pedindo proteção.

Com sua sinistra desgastada faz deitar a potente manhã, e com seus dedos faz vir a fria noite. Retornam suas criaturas, lentas, olhos semicerrados. Mais uma noite. Homens se desfazem da vestimenta, água morna escorre pelos corpos suados, sabonete tangenciando a fragrância doce na pele. A janta. A sobremesa. A novela costumeira. Após esses rápidos momentos, vão os corpos para a cama se sobreporem em atos. Torpor. Sono.

Faz a noite silente retroceder e dar lugar à manhã potente de calor com suas mãos potentes. Percebe que seu espírito está enfadado. Seus ouvidos e olhos estão dormentes. Seu vigor desaparecendo das veias. Decide percorrer mais uma vez os cantos da criação, procurar alguma novidade. Vaidade, tudo é vaidade. Solitário decidira ser antes que os tempos fizesse diretrizes do viver. Por que me abandonei? Não existe filho, pai, mãe ou irmãos; não existem companheiros, seguidores; não existe outro igual a si mesmo. Todas as coisas são suas. Não pode criar alguém que lhe seja igual. Não pode sentir a alegria de conviver. Vive apenas o que é. É incapaz de sentir a perda. A dor. Talvez quisesse trocar tudo pela vontade daquela que dançasse belamente; mas não existe quem lhe agrade com danças, pois não sente. Não criou para si a relação.

Dizem muitas coisas, que se enraivece, que é egoísta, que é amor, que é misericódia. Mas temem pensar que é solidão, silêncio, insensível. Não construíram uma teologia ou metafísica do desgaste. Daí tal ser não conseguir se compreender, pois não existem discursos teóricos sobre essa sensação que antes dos tempos lhe amargura o interior. Se é o salvador, que se salve a si mesmo. Médico, cura-te a ti mesmo.

E naquele momento a serpente lhe retruca: estás condenado a seres o teu próprio fardo, todas as tuas invencionices te serão um tormento eterno, verás se levantar do pó um homem e no dia seguinte voltar de onde veio, assistirás mudo a toda autodestruição, sentirás neste teu interior o mais profundo cansaço de todas as coisas, mas não terás a oportunidade de terminares com tua própria vida, não conseguirás como o fazem tuas criaturas, deverás te alimentar de teu próprio dissabor, assim está escrito no livro das Lamentações de Jeremias: que esteja sozinho e calado, quando cai sobre ele a desgraça (cap. 3, vers. 28). Teu próprio eco te condena com tuas próprias palavras. E assim deverá ser pelos séculos dos séculos sem fim.


Gabriel Sant'Ana

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

cena matinal

Respiro de modo breve e atento. É cedo. Ainda não despontou o sol com seu calor e luminosidade.

Já saem gentes de seus acalentadores buracos num ritmo raivoso, jogando sobre o corpo distenso do sono água fria despertadora, agressão sensorial de uma frieza invisível sempre permanente durante os primeiros segundos, mas ainda uma promessa futura de tornar relaxado o corpo batido pelo labor.

Entra no ônibus via baixada. Decadente cai sobre o espírito um ar que paira constantemente sobre as vias expressas e ferroviárias; constantemente perfurando limites urbano-corpóreos.

Fétido espírito embriagador de pele, sovaco, mãos, unhas, lábios, fumos perfumando em ritualístico movimento balouçante de ônibus e trem.


Gabriel Sant'Ana

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

sorteio madureira de prêmios

aglomerado de pessoas impedindo a passagem do corredor, térreo do shopping de madureira, contentes e nervosas, olhando a cena memorável que recorda os sorteios do rio de prêmios na televisão, mas agora ao vivo, ali, a oportunidade se faz para quem fez compras acima de duzentos reais, basta trazer os cupons, depois disso, leve seu corpo, melhor que não seja maior que o espaço onde deverá entrar, uma espécie de aquário de prêmios, cuidadosamente a pessoa entra, fecha-se a entrada, liga-se o dispositivo que fará inumeráveis papéis sorteados esvoaçarem dentro da cabine, esvoaçarem sobre o rosto, os braços, as pernas, envolverem aquele corpo disposto a tomar o máximo de papéis com as próprias mãos, vitrine envolvivente


Gabriel Sant'Ana

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Grãos

É prazeroso sentir no rosto a brisa da manhã ou mesmo o calor vespertino .

Deixe-se por um dia se levar por este movimento leve, perder-se pelas ruas há muito conhecidas, ressentir as memórias latejando nos seus membros já desgastados por tanto trabalho, por tantas doenças, por tanta espera na fila do SUS, por tantas idas e vindas no recadastramento no sistema do governo, por tantas pancadas em ônibus grosseiros.

Portanto, sinta-se, antes de tudo, livre, descansado, permitindo a si mesmo relembrar as antigas vivências, sentir mais uma vez a sua vida passada naquelas ruas por onde passava para ir à escola, ou à feira com seus 11 irmãos, ou naquela praça onde jogava bola, onde de tempos em tempos vinha um circo não se sabe de onde e ali se instalava para alegria da pequena vizinhança do pequeno subúrbio.

Num segundo momento, não que seja de fato segundo, pois esta ordem não se faz fria e calculada quando já habituada e mecanicamente repetida pelos dias - tal qual o ensaboarem-se as mãos, as costas, depois as pernas, em seguida os pés; ou os pés, as pernas, as costas, o rosto, depende de cada um a ordem de realização de tarefas comuns; mas, ao final, tudo se faz de maneira global, como um todo, a massa de um bolo, não importando a ordem dos ingredientes colocados para serem misturados e batidos na batedeira; portanto num segundo momento é importante se preocupar com a roupa a sair. Preferencialmente uma calça jeans já usada, uma blusa também envelhecida. Querendo pode usar um boné, ou mesmo um guarda-chuva para se proteger do sol intenso ou da chuva intensa ou dos chuviscos que aumentam o risco de um forte resfriado, o que obrigaria a ida até uma clínica familiar ou uma unidade de demorado atendimento.

Antes de tudo isso, a escolha do lugar. Uma praça. Costuma haver praças com coreto ao meio. Se não achar desse tipo, não há problema, desde que seja uma praça.

Leve consigo aquelas cascas de pão de forma que seus netos, ou sobrinhos, ou mesmo você, não costumam comer e ficam no saco e fica também a dúvida cruel se deve ou não jogar fora, pois é um pão, e há muita gente que come esses restos alimentares e você não quer se sentir culpado caso uma dessas pessoas morra ao comer uma casca de pão embolorada pelo tempo e exposição a lixos outros.

Tal como o cultivo de plantas, ou o cuidado de animaizinhos domésticos, tal como a participação em oficinas de convivência em centros específicos ou em faculdades, tal como passeios, idas a museus, viagens, reencontros com antigos amigos de infância ou de escola; assim também dar pães a pombos em praça é um saudável passatempo, melhor inclusive que jogar uma partida de cartas nas mesas endurecidas da praça e perder seus cinquenta reais, pois sua prática já não é a mesma.

Animais andarilhos, de aspecto sujo pela imundície cotidiana das grandes cidades, de olhar assustado e sempre atento aos movimentos de transeuntes, são os pombos curiosas aves. Sua alimentação, ainda que não necessariamente dependa de alguém, propositalmente eles a fazem, por meio de uma performance melancólica e patética, depender de algum transeunte sensível ao canto obscuro e surdo dessa emblemática ave.

A fim de melhorar sua atuação, alguns por descuido se deixam eletrocutar, ficando danificadas ou as duas patas ou apenas uma delas, e ao pousarem, por exemplo, no pátio de uma faculdade, ficam capengando, comovendo alunos recém-ingressos, desconhecedores que tais aves já fizeram daquele lugar espaço propício ao seu lanche das duas da tarde. Seus alvos preferidos são crianças ou idosos.

Então você não terá dificuldade em se aproximar deles. Se for sua primeira vez ao ir dar-lhes pães na praça próxima a sua casa, ou do seu bairro, não se engane, ali já é região dominada por eles, mesmo que nunca se tenha percebido antes.

Aproxime-se vagarosamente. Sente-se no banco a sua frente. Coloque ao seu lado o saco que traz. Abra-o também vagarosamente. Não se levante do banco para espalhar os farelos. Jogue-os de onde está. Lembre-se de como irriga suas plantinhas domésticas, você não joga um balde d'água, mas cuidadosamente com um borrifador. Com as pontas dos dedos, esfarele o pão sobre o chão. Se souber, que um assovio melodioso acompanhe a cena. Os pássaros se deleitam quando tentamos imitar-lhes os cantos. Procure acompanhar o ritmo e a direção do vento, seria cansativo ir contra a correnteza, os farelos podem ser levados à beira da rua, colocando em risco esses indefesos animais.

Os olhares são de início suspeitos. Ambos se encaram desconfiados. As mãos entrando no saco plástico de mercado, saindo cheias de alguma coisa que parece ser agradável ao paladar. Soltam alguns grãos ao vento. Melodioso som entoa aquele humano sentado ao banco encardido. É pão, é pão. Mais dois parceiros de voo se aproximam da área. Uma aparente briga se inicia. É importante lembrar que bica primeiro quem antes já estava. Trégua e ordem se tornam presentes e respeitadas.

Procure ir à praça todos os dias no mesmo horário. É importante a fidelidade de horário e de grãos.

Após um mês os olhares confiantes se correspondem instintivamente. Já leva alguns para sua própria residência. Oferta agora milhos, água, biscoitos em farelos. Vizinhos reclamam pelas doenças que podem transmitir. Suas compras mensais se destinam quase exclusivamente à alimentação dos mais novos amigos. Inumerável batalhão de asas domina os fios elétricos da rua.

Forte se torna o laço, ganham nomes, álbum de retratos, coleção de penas caídas, cuidados médicos exclusivos, carteirinhas de identificação, quartos, sala, enterros, preces.

Inevitável momento de expirar a vida. Necessária separação à busca de novos grãos.



Gabriel Sant'Ana

quinta-feira, 11 de julho de 2013

bolo de baunilha com recheio de coco

garfo penetrando a camada fofa de bolo de baunilha com recheio de coco levando à boca dentes língua saliva embolorando o bolo de baunilha num bolo misturado de baba pedaços do dente podre conservado com doces deliciosamente açucarados de finais de semana de fim de dieta coca-cola facilitando deglutição escorregando suave pelo tubo olhos famintos verificam o restante a ser mastigado apressadamente para mais pedaços dos restantes sobre a mesa mais copinhos de plástico de refrigerante pode ser dali do lá pepsi dolly tanto faz tanto fez gostoso mesmo é daquela receita que você me deu chegam mais convidados algum primo talvez que estava vindo do trabalho desculpe ter vindo essa hora sem problema senta aí pega o pedaço do bolo tácabando risos risos abraços fraternos não repara é um presente humilde depois te pago uma cerveja um rodízio de pizza que isso não precisa não o importante é ter se lembrado o importante é ter se lembrado o importante é ter se lembrado o importante porra nenhuma se foda a lembrança agora lambe bem os beiços e pouco se importa com as desculpas que tem que dizer com as lamentações que tem que fazer o que importa mesmo é deglutir e saciar as ânsias cerebrais sentidas na pele do estômago e no mau cheiro exalado da boca que nada põe dentro desde o almoço ou o lanchinho barato devora o singelo e humilde pedacinho de bolo de baunilha e entre risinhos falsos sugere o desejo do bis tris quiz levanta rápido repentinas sensações desagradáveis expressões poéticas arroto e peido soltos se evaporando penetrando a sacra região das vias naso-auriculares alheias expressão sensível da aflição corporal de expelir materiais acumulados de semanas evacuamento de arroz feijão pudim churrasco do fim de semana cerveja vinho pelos pubianos unhas roídas etc etc ad infinitum bolo fecal merda bruta endurecida rasgando orifício pregas olhinhos repuxados boca ressecada semiaberta saltitantes veias  capilares esforçantes doloridas suor desgaste receio de fazer barulho de deixar seu rastro fecal ao dar a descarga para salvação air wick home perfume alívio último resquício performatiza a cena limpa-cu-dá-descarga-limpa-mão pensei que você tivesse sumido aí dentro risos risos é risos risos olha guardei um pedaço do bolo pra você levar pra tomar café da manhã risinhos afáveis muito obrigado bem tenho que ir amanhã é cedo apertos de mãos



Gabriel Sant`Ana

apontamentos de aniversário

De todos os sonhos desejados, me saciei apenas com o da padaria, delícia de recheio.

De todas as felicidades esperadas, me encontrou apenas a alegria de um rápido trajeto de ônibus durante o qual comprei dois amendoins por dois reais. Fui mastigando cada amendoim sem casca enquanto via pessoas correndo a entrarem nos ônibus que paravam sempre fora dos pontos.

De qualquer vaga forma sempre se fica esperando, sempre se fica desejando, se fica sonhando...

Mas não. Basta de cordão-dos-puxa-sacos-cada-vez-aumenta-mais, basta de com-quem-será, basta de a-rua-inunda, basta de vou-comer-seu-bolo.

Rapidamente se corta o bolo sem um suspiro de mãos palmantes ou bocas cantantes. Colocam-se os pedaços no prato e se come. Somente saciar. Nada além disso.

Trajeto muito longo até cortar o bolo e distribui-lo. Diminuir isso tudo. Tão desnecessário que muitos nem se levantam para as palmas bater.



Gabriel Sant'Ana

sexta-feira, 28 de junho de 2013

De nozes de novo

Um bolo de nozes diferente. O meu bolo de nozes é bem diferente, é cheio de emoções, não tem bate-bate e nem quebra-quebra causando tanta irritação. Ninguém fica suando, com as mãos sangrando em consequência do movimento contínuo causado pelo martelinho. (Mudando a mesmice, de Honorina)

Tentava fazer diferente, querendo adoçar a amargura insossa. Havia buscado nas páginas da internet alguma receita distinta para o bolo de nozes que usaria para comemorar a chegada de julho. Pensava que sal fosse tempero de amizades, que farinha representasse alguma multiplicação, que água fosse purificação. Diversas relações simbólicas, que não eram senão sua tentativa de respirar e apreender todo o ar que lhe tocava a pele.
A mesmice iria sempre permanecer, ainda que obscurecida ou abafada por novos acontecimentos repetidos, uma sobrinha que seria mãe pela primeira vez é a repetição da renovação necessária do "crescei e multiplicai-vos", explosiva felicidade momentânea de gritinhos histéricos e lágrimas nos olhos de uma nostalgia da época em que também sentira as mudanças no corpo e uma suspeita lhe viera à mente, o primeiro aninho do sobrinho, os primeiros balbucios.
Percebe se acelerar o coração, uma leve tontura. A idade e seu peso, a mesma relação lógico-causal de um pensamento humano. O passar do tempo, as suas marcas, das experiências dos sofrimentos, das alegrias, do trabalho, da aposentadoria, dos filhos que criou, dos filhos que desejou ter, dos cortes de cabelo, dos ajantarados da época de estágio, da cirurgia no joelho devido ao acidente de ônibus, dos sonos interrompidos, de vários milissegundos de existência uterina. Decide ir ao banheiro. Não, melhor ir ao quarto, descansar alguns minutos, continuaria a procura da receita depois. Melhor não pegar os cadernos de receita, já estavam muito velhos e empoeirados.
Há muito não se olhava no espelho. Ela não se olha no espelho. Sempre preferiu tocar a própria pele. Se o fazia era somente para se maquilar. O toque reflexo do rosto, reflexo do pensamento. Sua boca se contorcendo pelos ombros caídos as pernas frágeis a osteoporose o câncer de garganta possivelmente a se revelar no exame que na próxima semana vai buscar algo do interior dos órgãos e do sangue se expelindo nas lágrimas incontíveis incontáveis vezes soluçando sente martelarem nas costas todas as idas e vindas de hospitais de curandeiros de igrejas de filosofias de bandeiras de sensações poéticas de teatralizações improvisadas de natais e carnavais de sexos brutais martelando profundamente no que acredita ser alma espírito perfurando a superfície da pele rugosa se dilacerando sentindo doenças curadas da infância brigas na adolescência do primeiro cigarro de reencarnações milenares anteriormente vividas futuramente vivíveis um forte impulso leva este corpo a pegar os cadernos de receita a rasgá-los devorá-los mastigar musses de chocolate cocadas espaguetes bolo de fubá tortas de maçã as letras da avó as anotações da tia rabiscos receitas incompletas contas no verso das páginas telefones alheios poeiras poeiras.


Gabriel Sant'Ana

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Desnecessidades

Nada mais irritante que entrar num ônibus, trem, metrô, lotado - um constante roçar violento de corpos apressados e suados - panorama comum (e talvez tenha abusado a leitura escrevendo período tão desnecessário).
Mas meu intuito é fazê-lo entrar em contato com meu panorama textual, fazer minhas palavras roçarem na sua retina ou nos seus ouvidos caso alguém esteja lendo devido a sua dificuldade, ou por ter esquecido os óculos no banheiro, ou uma conjuntivite, ou mesmo uma cegueira de nascença, ou ainda por ter feito mais cedo exame de vista e o médico lhe pedira repouso total.
Nada mais prazeroso que entrar num ônibus, trem, metrô, com algum espaço para se acomodar tranquilamente, estalar os dedos com cuidado; não falo para retirar da mochila, ou bolsa, aquele livro cuja leitura se faz obrigatória, ou entupir os ouvidos com fones para ouvir a música que você diz ser da sua vida. Digo para, ao sentar ou se ficar em pé, prestar atenção às pessoas que entram, que saem, às pessoas que vagam pelas ruas ou pelas estações, às árvores, ao chão, aos carros parados no trânsito, a uma discussão na calçada, a um acidente entre um ônibus e um carro onde estavam mãe e filho, que ia para o colégio, àquela pessoa sentada que não se ofereceu para segurar sua bolsa pesada, você tem ódio dela e esquece de olhar para o exterior, observa atento os movimentos desse cidadão, ele se faz de desentendido, abre a mochila, toma o celular, começa a jogar um joguinho irritante de pássaros idiotas, mas é interrompido por uma chamada, atende, um sorriso se estampa naquela cara, ele foi admitido no emprego, liga para alguém e conta toda a história do dia anterior em que fora à entrevista, mais de dez candidatos, mas se saiu bem na dinâmica de grupo, falou de modo claro e confiante com a entrevistadora; sua raiva aumenta porque você está desempregado e tem fome, não se desespere, você deve saltar no próximo ponto ou estação.
Você está sentado no ônibus. Engarrafamento. Todas as mãos começam a discar os números da residência, bocas nervosas transmitem ansiosas suas indignações, o filho ainda não jantou, chama o menino para chamar atenção em alta voz, e todos escutam. Observe as expressões das pessoas ao seu redor, olhe para os que estão dentro dos carros.
Não houve tempo para nada disso.


Gabriel Sant'Ana

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Tollebat citharam ( I Sm 16, 23)

dedilhava delicadamente
de Saul a cítara e o sentimento
recedendo o outro espírito
ressentido
rasgando ao sair com garras
a pele pelo sumo divino esquecida

leves ficando os humores
por dedos leves
assovios harmônicos

impaciente e grave rosto
brando e suave formando

antipático demônio
de traços grosseiros
incitando à diva aversão cítara
sacoleja o pesado corpo real
expelindo babas esverdeadas
revirando seus olhos
grossa voz faz sair da boca
impropérios e ameaças e gritos

dedilha mais suave
ao ouvido quase inaudível
seu corpo e suas mãos
se afastam em dança angelical
do possuído a cair pelo próprio
nó das pernas difusas

um novo hino sai da minha boca
para enaltecer tua vitória
sobre toda força brusca e animal.
não precisas a esta ser igual.
basta a ti a leveza inaudível
de harmoniosos instrumentos.
a ti bastam mãos delicadas
dedilhando por tua inspiração
o silente som
Eu sou Eu sou



Gabriel Sant'Ana


quarta-feira, 29 de maio de 2013

amor

e eu de você









(Gabriel Sant'Ana)

Véspera de Corpus Christi

Talvez um momento propício para uma reflexão existencial. Ou algum comentário sobre a necessidade da religião para o ser humano. Ou alguma interpretação de um trecho bíblico escolhido para este momento.
Talvez este espaço servisse para ser rascunhado algum discurso que estabelecesse uma intertextualidade com algum sermão do pe. Vieira. Ou fosse apresentada uma série de tópicos que descrevessem este momento em que enuncio meu discurso, ou mesmo tópicos de ideias a serem desenvolvidas futuramente.
Esqueço qualquer profundidade semântica - peço que o façam. Apenas considero o espaço desta folha e o espaço físico em que me insiro. Apenas me importa a linearidade sintática que existe até aqui e que ainda virá a ser escrita e terminada ou por ponto final ou reticências ou uma frase inacabada.
Mas a sensação existente das vésperas de feriados que latejam pulsantes nas minhas veias é de completo emudecimento.
Iria primeiramente considerar o peso que um feriado traz para a existência ou a necessidade da religião ou um trecho bíblico ou um sermão religioso ou uma topicalização de ideias afins. Mas não frutificou. Não dei cabo à vontade.
Cheguei ao ponto problemático - vontade.
Nenhuma divindade ou potência ou ser ou impulso me inspirou uma vontade.
Apenas várias pessoas passando pelos corredores circulares do shopping, apenas sentado observando e sentindo este ritmo sinestesicamente confuso, escrevendo algumas linhas despretensiosas cujo raciocínio se pode resumir em





Gabriel Sant'Ana

3 cenas

Cena 1

Repousa cuidadosamente sobre a mesa alcançada com dificuldade a bandeja com sua porção individual de lanche que demorou a ser preparado trinta minutos porque o empregado era recém-contratado e apresentava dificuldades no preparo do hambúrguer. Não se senta na cadeira. Vira-se para procurar onde se encontrava na fila naquele momento sua mais recente companheira que havia se demorado no banheiro mas ele fora adiantar indo procurar uma opção adequada aos hábitos alimentares de ambos, em seguida lhe envia mensagem de celular informando que já se encontrava na fila, ela lê a mensagem ainda dentro do banheiro, fazendo xixi, imagina como ele é atencioso e se lembra como ele tinha recebido calorosamente com um abraço tenro, sai lava as mãos se olha no espelho diz a si palavras de encorajamento e deseja que tudo dê certo, encaminha-se aonde ele estaria mas não o encontra, ficando assim em outra fila mas do mesmo estabelecimento, envia-lhe mensagem avisando o imprevisto e dizendo para ele comprar o que desejasse, que ela o encontraria na mesa que ele escolhesse, o reconheceria pela roupa.
Ele se vira para o estabelecimento em que ela estava ainda fazendo o pedido, acena-lhe, ela também, mas ele não se senta ainda, deseja intimamente iniciar o ritual de comer o primeiro lanche do primeiro encontro com ela. Uma das mulheres da limpeza se aproxima e pergunta se há algum problema, se a mesa estava suja ou se ele queria uma cadeira para crianças, não tudo bem estou esperando minha namorada. Ele se mantém estático, realizando levemente movimentos impacientes das mãos e dos olhos e dos pés e sua respiração ofegante aumentando seu nervosismo. Pergunta se ela já vinha, sim o meu lanche tá demorando um pouco fica tranquilo bj. Apesar da demora, possivelmente fora atendida pelo mesmo recém-funcionário, ela estabelece uma promessa de que certamente virá. Afasta irritado algumas moscas que sobrevoam sua bandeja, realmente inaceitável a existência de tais insetos em uma praça de alimentação depois de comer uma reclamação no serviço ao cliente.

Cena 2

Propõe que ela durma em sua casa. Aceita. Beijam-se ardentemente, enlaçam as mãos e vão para o estacionamento. Em ambos é igual o fluxo acelerado de sangue e de ar, em ambos a mesma expressão comum de impulso sexual. Adequadamente vestida e vestido para prazerosamente se desvestirem, acompanhados de vinho seco.

Cena 3

Não se obtém dela uma possibilidade futura de compartilhar o mesmo hábito e as mesmas manias. O jeito como ela segura o garfo e a faca, a maneira como mastiga, fala enquanto mastiga, apesar de ter percebido no primeiro encontro, a inconstante irregularidade desconforme é irritante.
Marca um encontro para as 19 h.



Gabriel Sant'Ana

o espaço existente

entre um copo de refrigerante
pessoas correndo para a liquidação
olhares curiosos do primeiro encontro
e um sanduíche dentro da caixa
e o vão da entrada da loja
e as mãos desejantes por se tocar


Gabriel Sant'Ana

segunda-feira, 13 de maio de 2013

não leia

tu ressoando em cada pulsação e extravasamento nas minhas noites solitárias e manuais em pensamento (considerar depois)

adepto a uma desconsideração prática simplesmente procuro ilusões memoriais e uma bebida barata, um refrigerante na promoção, quente

ainda falta considerar minha mania de enxugar primeiro a cabeça e depois as costas, de ensaboar primeiro o peito após os braços... Por que minha mania de pisar com o pé direito ao sair de casa e saindo do portão de costas?

...........      ...............     ...........    ...............

ressoando na minha cabeça tua imagem corpórea e me toco com as mãos sentindo tua possibilidade de estares a me tocar e engolir-me por completo e de sugar-me infinitamente sem receios

desconsidero praticamente tudo o que ilusoriamente se faz presente na minha memória e rejeito toda bebida barata e quente e de promoção, prefiro que me engane o supermercado ao me dizer que determinada bebida seja a melhor, ainda que seja o contrário

não tomo banho há um mês, todos dias entro no banheiro, abro o chuveiro para sentir a queda da água, depois do que finjo me enxugar, gravo isso na câmera; gravo também os passos simétricos que produzo ao ir para a estação de trem a caminho da faculdade; gravo todas essas pessoas andantes de olhar vazio e bocas semiabertas desejosas de um ar mais quente e venenoso

então toca o sinal indicador da estação na qual devo parar meu trajeto férreo e por descuido me lançar a uma via cansativa de asfalto e passarela e sinais e esbarrões que me roubam a alma de que piedosamente cuido todos os domingos

o descuido causador de quedas multíplices a que por fúria desmedida se sujeita - ridícula frase

ridículo texto - desconsidera o que leste até aqui

domingo, 28 de abril de 2013

Segundo dia

A respiração fatigada saindo de sua boca entreaberta, seu corpo extasiado, embebido em uma sonolência estática, revirando-se para os dois lados, suas pernas misturando-se com seus braços, fios de cabelo entrando na outra boca, seu ombro o travesseiro do outro, apenas de calcinha preta, enrolada no lençol, olhos semiabertos revirando-se por causa de um sonho um tanto perturbado, instintivamente busca abrigo em seu peito, em resposta um abraço forte e a perna direita a envolver seu quadril, daqui a dois minutos o despertador a tocar.
Oito e meia da manhã, domingo, segundo dia.
Após os rápidos minutos de abrir os olhos, de trocarem olhares e beijos carinhosos, e roçar de mãos pelo corpo, ajeitar o cabelo, retirá-lo de dentro da boca, balbuciar algumas palavras, talvez um bom-dia, ou um eu-te-amo, instantes em que a vista se irrita com a luz do dia a penetrar o interior do quarto através de uma brecha da cortina, invadindo agressiva a retina, fariam o costumeiro de todas as manhãs, levantar, tomar banho juntos, vestir-se e tomar café.
O toque gelado da água no corpo aquecido de uma noite entranhada no corpo do outro sob o lençol. Um leve arrepio. Beijos molhados e a espuma do sabonete.
O olhar dela sugere uma entrega oculta aos dias dele que virão. Confirmam essa suspeita os lábios que tremem um sorriso, as mãos que seguram firmes as dele, o olhar cabisbaixo e o rosto a cair sobre o ombro.
Não foi preciso pedir que ela ficasse. Não voltaria a trabalhar na padaria. Não mais teriam conversas triviais.
Parecia estar satisfeito com a companhia. Ambos pareciam estar.
Não temos mais o que relatar deste maravilhoso dia comum, apenas o que ficou acima, a cena do banho, que parece não se repetiu nos outros dias, ou por causa da pressa, ou porque a cotidianidade do convívio tornou o corpo de cada um demais gasto para as vistas, não despertando mais curiosidade ou prazer intenso.


Gabriel Sant'Ana

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Primeiro dia

Havia começado com uma caminhada há alguns poucos minutos. Sentia sua respiração ofegantemente suada. Puxava pela boca o escapável ar da manhã - frio, fino, geladinho doendo as narinas entupidas de coriza. Sentia uma leve tontura na cabeça cheia de pensamentos rarefeitos que se esforçava por conseguir captar o sonho do dia anterior. Não adiantaria o vão esforço.
Deu continuação a mais um pequeno percurso da sua rua. É ruim começar uma caminhada com o estômago vazio.
Mas assim que chegasse à padaria e desse bom dia à magricela mas adorável atendente e fizesse uma pergunta indiscreta a ela convidando para tomar café da manhã com ele e pedisse o pão que deveria ter acabado de sair há uns dez minutos e provavelmente ela aceitaria o convite pois já seria a terceira tentativa que faria mas notara que os gordos olhinhos verdes da mulher estavam menos negativos e mais abertos a uma possível nova aventurinha amorosa - na verdade ela notara que ele sempre pagava com notas de cinquenta reais e sempre dava a ela uma diminuta gorjeta de dez reais.
Bom dia minha querida; estou ofegante porque hoje comecei a minha tarefa de parar com o sedentarismo, cansei de acordar e ficar sentado de frente para a tv e ficar assistindo aos mesmos noticiários matinais... Estava pensando que você bem poderia vir comigo me fazer companhia no meu café que cotidianamente tomo sozinho no silêncio da minha cozinha.
Tá bom. - Secamente e de maneira direta respondeu, ao passo que ele se surpreende com uma afirmação tão categórica e positivamente afirmativa.
Agora haviam começado o mesmo percurso da volta atravessando a rua com o máximo de cuidado e atenção.
Não conversam apenas se olham.
Sou filha do dono... Gosto de trabalhar de manhã para ter tempo de ir para a faculdade de noite...
As primeiras palavras se confundiam com os primeiros raios de sol daquele dia.
Primeira hora da manhã daquele dia. Oito horas.
Aqui é a minha casa fique à vontade.
Trinta minutos após as primeiras horas das primeiras palavras.
Tiram os sapatos. Convida para um banho morno para esquentar os corpos enregelados das anteriores horas daquela manhã.
Sussurros e abraços e mordidas e beijos e arranhões. Entrando, metendo, saindo, chupando, sugando, metendo com mais força e vigor, vigorosamente ardida, molhada, abrindo a boca, fechando os olhinhos verdes, vigorosamente cheio de sangue e furor, forçando, empurrando mais fundo, sendo empurrada contra a parede, batendo com a cabeça, sendo puxados os cabelos, sendo furiosamente.
Deixaram os oito pães sobre a mesa - se esfriando durante.
Após os durantes quarenta minutos de banho retornam à cozinha, esquentam os pães, faz um café rapidamente.
Naquele dia passou a tarde na casa. Pedira que ela ficasse para a janta.
Naquele dia dormiu acompanhado preenchendo o vazio lateral da cama. Pedira que ela ficasse para dormir.
Passou o dia com sua manhã, tarde e noite. Vinte e três horas completamente usadas. Faltava uma que usariam para as conversas triviais de o-que-você-faz, o-que-você-pensa-da-vida, nossa-mas-que-interessante, já-namorou-antes, quer-ter-filhos, etc-etc-etc.
Fim do primeiro dia.

Gabriel Sant'Ana

quarta-feira, 13 de março de 2013

formas várias

o uso devido do adjetivo - fazer o leitor sentir as características atribuídas a um nome

mesmo buscando mostrar toda a fugacidade das coisas do mundo, que possuem brilho chamativo mas enganador, sente-se o primor argumentativo do douto sto Agostinho, ao lançar mão dos adjetivos , e mais, pela topicalização dos complementos do verbo "amant":

pulchras formas et varias, nitidos et amoenos colores amant oculi
(confissões 10, 34. 51)


adjetivos em destaque: pulchras e varias [nome formas]; nitidos e amoenos [nome colores]
o verbo no presente do indicativo demonstra uma afirmação categórica e atemporal...
Impressionante as luzes amenas, nítidas, formas várias e belas nos shoppings, nas academias, paramos diante de um espetáculo desse..

o escritor continua dizendo que non teneant haec animam meam

mas infelizmente, viramos nosso pescoço e nossos olhos diante de qualquer brilho, somos capturados pelos fortes brilhos de uma propaganda do mais recente carro que nos oferece uma viagem amena...
ou mesmo sanduíches deliciosos que na tela se apresentam aos nossos olhos vorazes e famintos enquanto esperamos na fila sermos atendidos...



Gabriel Sant'Ana

gaudio estivali

Pássaros cantam a alegria da chegada de mais um verão
Enquanto o coro de jovens se prepara a se lançar
sobre as vítimas de seu intenso amor.

O Amor se excita com tantas vozes
com tantas mãos a se tocarem
com tantos gemidos inefáveis
de gritinhos e mordidas
e arranhões
e uniões múltiplas

no florido campo de açucenas.


Gabriel Sant'Ana

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O velho-de-barbas-brancas

- Eu gostaria que esta noite não acabasse como todas as noites.

Assim foi o pensamento de Marcos quando o ponteiro marcou 18h. Talvez não fosse literalmente assim; mas o teor do desejo que passava dentro de seu cabeça, que provinha das profundezas de algum ponto de sentimento existente no peito de uma criança que sempre quer que os dias que considera maravilhosos não se acabem e sejam esquecidos ao acordar do dia seguinte.

Ele foi bastante humilde ao elevar o seu pensamento aos céus, ou, como ele mesmo pensava, ao velho-de-barbas-brancas.

As maravilhas são uma forma de enxergar de forma obtusa e semicerrada os fatos cotidianos mais simplórios e banais.

No início do dia, uma alegria incomparável tomou conta de Marcos. Levantou-se da cama não como de costume, mas alegre, apesar das remelas nos olhos e uma fome desalentadora. Abraçou os pais, fez o seu próprio pão. O dia estava radiante, apesar de algumas nuvens muito cinzentas. Regou as plantinhas de sua mãe, retirou as folhas secas, adubou a terra.

Alguém chamava no portão. Marcos foi ver quem era. Um velhinho pedindo um copo d'água. Mas ele se encaixava de forma perfeita com as características que ouvia das narrativas. Um pouco encurvado, óculos grossos, roupas brancas, botas, mão tremendo, voz delicada e gostosa de se ouvir - parecida com as de locutores dos supermercados anunciando a promoção de alcatra -, sorriso sincero nos lábios, barbas longas e bem feitas. Correu rapidamente para pegar água ao velho-de-barbas-brancas. Quando retornou não estava mais do lado de fora, mas já na sua varanda.

- Senta-te aqui, meu caro. Preciso te dizer algumas palavras.

Marcos obedece. O velho-de-barbas-brancas com sua voz transcendental, canora, verdadeiro aedo recitando de cor as velhas histórias conhecidas de todos:

- Meu filhinho, te digo que as maravilhas que escutaste nas histórias antigas existem. Eu sou o mundo que ouviste nas narrativas, sou Homero, Vergílio, Dante, o Velho-do-Saco, o Lobo-Mau, Camões, Joyce, o escritor deste conto "infanto-juvenil", o narrador deste conto, todos os narradores de todas as histórias, os pensamentos mais vagos e mirabolantes que as pessoas têm quando estão acordadas ou dormindo, sou você Marcos, filho de Pedro e Júlia. Não te espante. As coisas absurdas se mascaram na racionalidade das coisas comuns e cotidianas e explicadas. Veja por exemplo, você é apenas um personagem de uma grande história de duas famílias que se juntaram, que são outra grande história de outras uniões. Eu hoje sou o que se chama Papai-Noel, uma velhíssima história que não preciso te contar porque já a sabes. Mas amanhã serei apenas um velho que será recolhido ao asilo de onde fugiu há três meses. Tu hoje és um menino que espera ansioso ganhar presentes de Natal. Mas amanhã serás apenas o mesmo Marcos que tens sempre desempenhado, mal educado, que acorda mal humorado, mimado. Isso porque o que se é hoje depende intimamente das expectativas que criamos dentro de nós mesmos. Mas de fato, a realidade nua e crua, você é ninguém, eu sou ninguém. Lembra-te de que hoje conversaste com Ninguém que se diz Papai-Noel. Agradeço este maravilhoso copo d'água. Minha garganta estava realmente seca.

Marcos ouviu atentamente o que o velho-de-barbas-brancas disse. Estava realmente espantado com que ouvira. De qualquer forma não é todo dia que se conversa com Papai-Noel.

- Agora preciso ir e falar com mais crianças que o Papai-Noel existe. Ano passado consegui ir a todas as casas da rua do seu colégio. Este ano quero chegar até Madureira. Não vou de trem nem de ônibus, perdi meu cartão de idoso. Vou a pé mesmo! É tão maravilhoso andar e não precisar de trenó nenhum! Sentir o vento tocando meu rosto, o calor queimando meu rosto... Quando chegar a noite vais desejar que o dia seguinte não chegue, porque este absurdo maravilhoso de ter conversado comigo, o verdadeiro Papai-Noel, não se deixe enganar por esses velhos gordos que se fantasiam nos shoppings, eles são falsos, tu não saberás se irá se repetir ano que vem... Já me sinto muito fraco, minhas forças estão se diluindo porque a cada dia que passa mais pessoas, mais crianças desacreditam em mim... Vê minhas mãos... Parecem sumir... Meus pés estão virando poeira... Me sinto ser apagado desta história... Escuto todas as vozes em coro dizendo "Papai Noel não existe"... Guarde contigo a verdade que te contei, pois sei que não vou durar mais um minuto aqui... Adeus...

Lágrimas escorrem dos olhos do garoto. Passaria aquele dia memorável sem contar o que lhe acontecera, temia que esquecesse de tudo. Não dormiria, resistiria ao temível Sono que domina as fontes de esquecimento.


Gabriel Sant'Ana

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Do relógio faz-me angustiar cada minuto

Do relógio faz-me angustiar cada minuto,
Infinitas vezes tuas palavras releio na tela.
Ai, por que demoras, meu amado?

Amada, daqui três horas chego,
Estejas preparada.
Ai, meu amado, por que não chegas?

Às nuvens implorei
Aos sinais de trânsito
Às ruas, encruzilhadas
Que obstáculo algum houvesse
Nem distração.

(Mas meu próprio tempo
É que perco)

Ensandecida fui
Em tuas palavras confiar;
Me cativaram e me enlaçaram.
Ai, que não hás de chegar, meu amado...

Ecoam nos meus olhos tuas letras.
Me oprimo por meu corpo desejar
Das tuas mãos o toque,
(Ai, que não chegas...)
Da tua boca beijos e mordidas e doçuras,
Do teu corpo o peso.

Passou-se o tempo combinado.
A maquiagem desmancham as lágrimas.
Ai, amado...
Da vinda a promessa apenas ficou,
No teu esquecimento diluída.

Ai, amado, cheguem amanhã
Ao menos tuas desculpas
Em longos ou curtos períodos.

Cheguem amanhã, ai, amado,
Mesmo que mentirosas
Tuas palavras.


Gabriel Sant'Ana


Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...