quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

De como se estrutura em narrativa um copo d’água, uma carta antiga não aberta e um banco de praça coordenados

Alisa a folha nova sentindo sua brancura, sua lisa textura, sentindo a prazerosa angústia de ter, não sabendo de que maneira, de corromper com seu vernáculo as brancas e intactas páginas com alguma historieta.
De fato precisava escrever a uma amiga sua, há muito lhe prometera notícias e novidades se houvesse; como não vinham, postergava a tarefa. E assim se passaram quinze anos sem uma linha escrita no caderno que especialmente comprara para aquilo.
Na verdade a brancura da folha era de uma brancura amarelecida pelo tempo em que fechadas ficaram entre muitos livros empoeirados e roídos na sua estante. Hoje, sem razão ou motivo conhecido, decidira ler um deles e acabara se dando conta do caderno.
Alisando ainda as folhas fica imaginando, pensando em como sua amiga deveria estar, se acabara se casando, se sucedera o que ouvira de um de seus amigos.
Já tinha escrito no envelope em que colocaria a carta por escrever.

Seria muito difícil para mim, depois de tanto tempo omisso e escondido, aparecer à porta de sua casa sem motivos ou explicações.
Neste momento lhe escrevo com as mais doloridas angústias de um ressentimento infantil.
Mas estas palavras nunca hão de ser lidas ainda que as escreva.
Por mais de vinte anos esperei pela exata hora em que estas folhas se envelhecessem a tal ponto que parecessem de um tempo em que realmente fui feliz, que parecesse que fora comprado para que eu lhe escrevesse poemas quando fosse seu aniversário ou, todos os dias, arrancando uma folha lhe deixasse recadinhos amorosos e apaixonados, mesmo um bom dia, te amo!.

Suas pernas se agitam e seus olhos se umedecem quanto mais se relembra da época em que estavam juntos, em que eram felizes. Levanta-se do banco para beber água, talvez assim se acalmasse um pouco.

Mas quando você decidiu ir, todos os dias eu voltava àquele nosso especial lugar, me sentava naquele mesmo banco da praça onde nos encontrávamos e discutíamos bobagens de literatura e criticávamos nossos próprios contos e poemas, ridículos poemas, ridículos contos mal escritos, e nos achávamos escritores...

Suspende o fluxo da escrita e manda uma mensagem para o celular da amiga.

Já comecei.

Mas ainda que doloroso, tínhamos feito nossa escolha em comum acordo, em lágrimas mútuas

Parou de escrever sem ter colocado o ponto final. Decidiram que não terminariam com uma pontuação sequer.

Terminei. Amanhã chegará.

Quando ela recebeu a primeira mensagem, ao ouvir o celular tocar, já esperava ser dele. Arrumou-se. Bebeu um copo d’água no mesmo instante que ele e foi para uma praça que distava poucos metros de sua casa.
Tanto tempo que viveram juntos foi formando neles um hábito comum de atitudes e pensamentos, hábitos e manias.
Leva consigo o copo d’água para a praça onde ficaria esperando pela carta.

Dobrou a missiva e pôs dentro do envelope. Colou.

(em letras pequenas para caber no espaço)
Querida, eis a carta que deixei por envelhecer e que recebes e que não deves abrir. O que nela está já sabes de cor.
Deves como de costume pegar um copo, enchê-lo de água e ir até a praça do teu bairro. Lá chegando sentes no primeiro banco que vires, beba a água de forma a te engasgares. (leva contigo isto). Também eu farei o mesmo.
De forma que engasgados nos encontraremos


[Dados 3 elementos em que um não se sobressaia ao segundo nem este ao terceiro nem este ao primeiro. Relação paratática.
E 1 = carta antiga que não foi aberta; E 2 = copo d’água; E 3 = banco de uma praça
Estes numa relação que gera um resultado Y que deve ser estranho.
Estranho – evento que foge à naturalidade das coisas reais e pragmáticas.
Y perpassa gradativamente ascendente toda a narrativa.]

Gabriel Sant'Ana

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