Alisa a folha nova sentindo sua brancura, sua lisa textura,
sentindo a prazerosa angústia de ter, não sabendo de que maneira, de corromper
com seu vernáculo as brancas e intactas páginas com alguma historieta.
De fato precisava escrever a uma
amiga sua, há muito lhe prometera notícias e novidades se houvesse; como não
vinham, postergava a tarefa. E assim se passaram quinze anos sem uma linha
escrita no caderno que especialmente comprara para aquilo.
Na verdade a brancura da folha era
de uma brancura amarelecida pelo tempo em que fechadas ficaram entre muitos
livros empoeirados e roídos na sua estante. Hoje, sem razão ou motivo
conhecido, decidira ler um deles e acabara se dando conta do caderno.
Alisando ainda as folhas fica
imaginando, pensando em como sua amiga deveria estar, se acabara se casando, se
sucedera o que ouvira de um de seus amigos.
Já tinha escrito no envelope em que
colocaria a carta por escrever.
Seria muito difícil para mim, depois de tanto tempo omisso e escondido, aparecer à porta de sua casa sem motivos ou explicações.
Neste momento lhe escrevo com as
mais doloridas angústias de um ressentimento infantil.
Mas estas palavras nunca hão de ser
lidas ainda que as escreva.
Por mais de vinte anos esperei pela
exata hora em que estas folhas se envelhecessem a tal ponto que parecessem de
um tempo em que realmente fui feliz, que parecesse que fora comprado para que
eu lhe escrevesse poemas quando fosse seu aniversário ou, todos os dias,
arrancando uma folha lhe deixasse recadinhos amorosos e apaixonados, mesmo um
bom dia, te amo!.
Suas pernas se agitam e seus olhos se umedecem quanto mais se relembra da época em que estavam juntos, em que eram felizes. Levanta-se do banco para beber água, talvez assim se acalmasse um pouco.
Mas quando você decidiu ir, todos os dias eu voltava àquele nosso especial lugar, me sentava naquele mesmo banco da praça onde nos encontrávamos e discutíamos bobagens de literatura e criticávamos nossos próprios contos e poemas, ridículos poemas, ridículos contos mal escritos, e nos achávamos escritores...
Suspende o fluxo da escrita e manda uma mensagem para o celular da amiga.
Já comecei.
Mas ainda que doloroso, tínhamos feito nossa escolha em comum acordo, em lágrimas mútuas
Parou de escrever sem ter colocado o ponto final. Decidiram que não terminariam com uma pontuação sequer.
Terminei. Amanhã chegará.
Quando ela recebeu a primeira mensagem, ao ouvir o celular tocar, já esperava ser dele. Arrumou-se. Bebeu um copo d’água no mesmo instante que ele e foi para uma praça que distava poucos metros de sua casa.
Tanto tempo que viveram juntos foi
formando neles um hábito comum de atitudes e pensamentos, hábitos e manias.
Leva consigo o copo d’água para a
praça onde ficaria esperando pela carta.
Dobrou a missiva e pôs dentro do envelope. Colou.
(em letras pequenas para caber no espaço)
Querida, eis a carta que deixei por
envelhecer e que recebes e que não deves abrir. O que nela está já sabes de
cor.
Deves como de costume pegar um
copo, enchê-lo de água e ir até a praça do teu bairro. Lá chegando sentes no
primeiro banco que vires, beba a água de forma a te engasgares. (leva contigo
isto). Também eu farei o mesmo.
De forma que engasgados nos
encontraremos
[Dados 3 elementos em que um não se sobressaia ao segundo nem este ao terceiro nem este ao primeiro. Relação paratática.
E 1 = carta antiga que não foi
aberta; E 2 = copo d’água; E 3 = banco de uma praça
Estes numa relação que gera um
resultado Y que deve ser estranho.
Estranho – evento que foge à
naturalidade das coisas reais e pragmáticas.
Y perpassa gradativamente
ascendente toda a narrativa.]
Gabriel Sant'Ana
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