sexta-feira, 28 de junho de 2013

De nozes de novo

Um bolo de nozes diferente. O meu bolo de nozes é bem diferente, é cheio de emoções, não tem bate-bate e nem quebra-quebra causando tanta irritação. Ninguém fica suando, com as mãos sangrando em consequência do movimento contínuo causado pelo martelinho. (Mudando a mesmice, de Honorina)

Tentava fazer diferente, querendo adoçar a amargura insossa. Havia buscado nas páginas da internet alguma receita distinta para o bolo de nozes que usaria para comemorar a chegada de julho. Pensava que sal fosse tempero de amizades, que farinha representasse alguma multiplicação, que água fosse purificação. Diversas relações simbólicas, que não eram senão sua tentativa de respirar e apreender todo o ar que lhe tocava a pele.
A mesmice iria sempre permanecer, ainda que obscurecida ou abafada por novos acontecimentos repetidos, uma sobrinha que seria mãe pela primeira vez é a repetição da renovação necessária do "crescei e multiplicai-vos", explosiva felicidade momentânea de gritinhos histéricos e lágrimas nos olhos de uma nostalgia da época em que também sentira as mudanças no corpo e uma suspeita lhe viera à mente, o primeiro aninho do sobrinho, os primeiros balbucios.
Percebe se acelerar o coração, uma leve tontura. A idade e seu peso, a mesma relação lógico-causal de um pensamento humano. O passar do tempo, as suas marcas, das experiências dos sofrimentos, das alegrias, do trabalho, da aposentadoria, dos filhos que criou, dos filhos que desejou ter, dos cortes de cabelo, dos ajantarados da época de estágio, da cirurgia no joelho devido ao acidente de ônibus, dos sonos interrompidos, de vários milissegundos de existência uterina. Decide ir ao banheiro. Não, melhor ir ao quarto, descansar alguns minutos, continuaria a procura da receita depois. Melhor não pegar os cadernos de receita, já estavam muito velhos e empoeirados.
Há muito não se olhava no espelho. Ela não se olha no espelho. Sempre preferiu tocar a própria pele. Se o fazia era somente para se maquilar. O toque reflexo do rosto, reflexo do pensamento. Sua boca se contorcendo pelos ombros caídos as pernas frágeis a osteoporose o câncer de garganta possivelmente a se revelar no exame que na próxima semana vai buscar algo do interior dos órgãos e do sangue se expelindo nas lágrimas incontíveis incontáveis vezes soluçando sente martelarem nas costas todas as idas e vindas de hospitais de curandeiros de igrejas de filosofias de bandeiras de sensações poéticas de teatralizações improvisadas de natais e carnavais de sexos brutais martelando profundamente no que acredita ser alma espírito perfurando a superfície da pele rugosa se dilacerando sentindo doenças curadas da infância brigas na adolescência do primeiro cigarro de reencarnações milenares anteriormente vividas futuramente vivíveis um forte impulso leva este corpo a pegar os cadernos de receita a rasgá-los devorá-los mastigar musses de chocolate cocadas espaguetes bolo de fubá tortas de maçã as letras da avó as anotações da tia rabiscos receitas incompletas contas no verso das páginas telefones alheios poeiras poeiras.


Gabriel Sant'Ana

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Desnecessidades

Nada mais irritante que entrar num ônibus, trem, metrô, lotado - um constante roçar violento de corpos apressados e suados - panorama comum (e talvez tenha abusado a leitura escrevendo período tão desnecessário).
Mas meu intuito é fazê-lo entrar em contato com meu panorama textual, fazer minhas palavras roçarem na sua retina ou nos seus ouvidos caso alguém esteja lendo devido a sua dificuldade, ou por ter esquecido os óculos no banheiro, ou uma conjuntivite, ou mesmo uma cegueira de nascença, ou ainda por ter feito mais cedo exame de vista e o médico lhe pedira repouso total.
Nada mais prazeroso que entrar num ônibus, trem, metrô, com algum espaço para se acomodar tranquilamente, estalar os dedos com cuidado; não falo para retirar da mochila, ou bolsa, aquele livro cuja leitura se faz obrigatória, ou entupir os ouvidos com fones para ouvir a música que você diz ser da sua vida. Digo para, ao sentar ou se ficar em pé, prestar atenção às pessoas que entram, que saem, às pessoas que vagam pelas ruas ou pelas estações, às árvores, ao chão, aos carros parados no trânsito, a uma discussão na calçada, a um acidente entre um ônibus e um carro onde estavam mãe e filho, que ia para o colégio, àquela pessoa sentada que não se ofereceu para segurar sua bolsa pesada, você tem ódio dela e esquece de olhar para o exterior, observa atento os movimentos desse cidadão, ele se faz de desentendido, abre a mochila, toma o celular, começa a jogar um joguinho irritante de pássaros idiotas, mas é interrompido por uma chamada, atende, um sorriso se estampa naquela cara, ele foi admitido no emprego, liga para alguém e conta toda a história do dia anterior em que fora à entrevista, mais de dez candidatos, mas se saiu bem na dinâmica de grupo, falou de modo claro e confiante com a entrevistadora; sua raiva aumenta porque você está desempregado e tem fome, não se desespere, você deve saltar no próximo ponto ou estação.
Você está sentado no ônibus. Engarrafamento. Todas as mãos começam a discar os números da residência, bocas nervosas transmitem ansiosas suas indignações, o filho ainda não jantou, chama o menino para chamar atenção em alta voz, e todos escutam. Observe as expressões das pessoas ao seu redor, olhe para os que estão dentro dos carros.
Não houve tempo para nada disso.


Gabriel Sant'Ana

Praça dos sobreviventes

Saindo do portão gradeado e alto da escola, há uma praça que fica em frente, a uns dois metros, de uma igreja que abre às seis da manhã, cu...