quinta-feira, 25 de julho de 2013

Grãos

É prazeroso sentir no rosto a brisa da manhã ou mesmo o calor vespertino .

Deixe-se por um dia se levar por este movimento leve, perder-se pelas ruas há muito conhecidas, ressentir as memórias latejando nos seus membros já desgastados por tanto trabalho, por tantas doenças, por tanta espera na fila do SUS, por tantas idas e vindas no recadastramento no sistema do governo, por tantas pancadas em ônibus grosseiros.

Portanto, sinta-se, antes de tudo, livre, descansado, permitindo a si mesmo relembrar as antigas vivências, sentir mais uma vez a sua vida passada naquelas ruas por onde passava para ir à escola, ou à feira com seus 11 irmãos, ou naquela praça onde jogava bola, onde de tempos em tempos vinha um circo não se sabe de onde e ali se instalava para alegria da pequena vizinhança do pequeno subúrbio.

Num segundo momento, não que seja de fato segundo, pois esta ordem não se faz fria e calculada quando já habituada e mecanicamente repetida pelos dias - tal qual o ensaboarem-se as mãos, as costas, depois as pernas, em seguida os pés; ou os pés, as pernas, as costas, o rosto, depende de cada um a ordem de realização de tarefas comuns; mas, ao final, tudo se faz de maneira global, como um todo, a massa de um bolo, não importando a ordem dos ingredientes colocados para serem misturados e batidos na batedeira; portanto num segundo momento é importante se preocupar com a roupa a sair. Preferencialmente uma calça jeans já usada, uma blusa também envelhecida. Querendo pode usar um boné, ou mesmo um guarda-chuva para se proteger do sol intenso ou da chuva intensa ou dos chuviscos que aumentam o risco de um forte resfriado, o que obrigaria a ida até uma clínica familiar ou uma unidade de demorado atendimento.

Antes de tudo isso, a escolha do lugar. Uma praça. Costuma haver praças com coreto ao meio. Se não achar desse tipo, não há problema, desde que seja uma praça.

Leve consigo aquelas cascas de pão de forma que seus netos, ou sobrinhos, ou mesmo você, não costumam comer e ficam no saco e fica também a dúvida cruel se deve ou não jogar fora, pois é um pão, e há muita gente que come esses restos alimentares e você não quer se sentir culpado caso uma dessas pessoas morra ao comer uma casca de pão embolorada pelo tempo e exposição a lixos outros.

Tal como o cultivo de plantas, ou o cuidado de animaizinhos domésticos, tal como a participação em oficinas de convivência em centros específicos ou em faculdades, tal como passeios, idas a museus, viagens, reencontros com antigos amigos de infância ou de escola; assim também dar pães a pombos em praça é um saudável passatempo, melhor inclusive que jogar uma partida de cartas nas mesas endurecidas da praça e perder seus cinquenta reais, pois sua prática já não é a mesma.

Animais andarilhos, de aspecto sujo pela imundície cotidiana das grandes cidades, de olhar assustado e sempre atento aos movimentos de transeuntes, são os pombos curiosas aves. Sua alimentação, ainda que não necessariamente dependa de alguém, propositalmente eles a fazem, por meio de uma performance melancólica e patética, depender de algum transeunte sensível ao canto obscuro e surdo dessa emblemática ave.

A fim de melhorar sua atuação, alguns por descuido se deixam eletrocutar, ficando danificadas ou as duas patas ou apenas uma delas, e ao pousarem, por exemplo, no pátio de uma faculdade, ficam capengando, comovendo alunos recém-ingressos, desconhecedores que tais aves já fizeram daquele lugar espaço propício ao seu lanche das duas da tarde. Seus alvos preferidos são crianças ou idosos.

Então você não terá dificuldade em se aproximar deles. Se for sua primeira vez ao ir dar-lhes pães na praça próxima a sua casa, ou do seu bairro, não se engane, ali já é região dominada por eles, mesmo que nunca se tenha percebido antes.

Aproxime-se vagarosamente. Sente-se no banco a sua frente. Coloque ao seu lado o saco que traz. Abra-o também vagarosamente. Não se levante do banco para espalhar os farelos. Jogue-os de onde está. Lembre-se de como irriga suas plantinhas domésticas, você não joga um balde d'água, mas cuidadosamente com um borrifador. Com as pontas dos dedos, esfarele o pão sobre o chão. Se souber, que um assovio melodioso acompanhe a cena. Os pássaros se deleitam quando tentamos imitar-lhes os cantos. Procure acompanhar o ritmo e a direção do vento, seria cansativo ir contra a correnteza, os farelos podem ser levados à beira da rua, colocando em risco esses indefesos animais.

Os olhares são de início suspeitos. Ambos se encaram desconfiados. As mãos entrando no saco plástico de mercado, saindo cheias de alguma coisa que parece ser agradável ao paladar. Soltam alguns grãos ao vento. Melodioso som entoa aquele humano sentado ao banco encardido. É pão, é pão. Mais dois parceiros de voo se aproximam da área. Uma aparente briga se inicia. É importante lembrar que bica primeiro quem antes já estava. Trégua e ordem se tornam presentes e respeitadas.

Procure ir à praça todos os dias no mesmo horário. É importante a fidelidade de horário e de grãos.

Após um mês os olhares confiantes se correspondem instintivamente. Já leva alguns para sua própria residência. Oferta agora milhos, água, biscoitos em farelos. Vizinhos reclamam pelas doenças que podem transmitir. Suas compras mensais se destinam quase exclusivamente à alimentação dos mais novos amigos. Inumerável batalhão de asas domina os fios elétricos da rua.

Forte se torna o laço, ganham nomes, álbum de retratos, coleção de penas caídas, cuidados médicos exclusivos, carteirinhas de identificação, quartos, sala, enterros, preces.

Inevitável momento de expirar a vida. Necessária separação à busca de novos grãos.



Gabriel Sant'Ana

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