segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Das orelhas

E modelou dois orifícios laterais na parte superior daquela massa de barro, a que se chama cabeça. Ainda não tinha pensado qual a serventia dessas partes adjuntas à cabeça. Não soube por que criara aquilo, já que não tinha. De onde tirara aquela forma?
Sim. Agora fazia sentido. Eles só me ouvirão, só escutarão a minha voz. Falarei e eles me atenderão. Só reconhecerão a minha voz. Estais proibidos de ouvir outra voz senão a minha, pois no momento em que virardes vossos ouvidos a outras vozes, sereis amaldiçoados.
A serpente viu que a criação das orelhas era muito boa e refletiu sobre outras possíveis serventias. Não era cabível que dois orifícios servissem unicamente para ouvir uma única voz. Isso era absurdo. Quantas coisas interessantes e fantásticas poderiam ser repassadas e recontadas? Como se daria a comunicação? Não se daria.
A mulher ouviu os argumentos da serpente. Ficou com dúvidas. Afinal, era possível ou permitida a ideia de não ficar reprimida a uma voz onissoante? Vá e conversa com teu homem.
Por que devemos ouvir apenas a Sua voz? Por que não posso falar com você, ou debatermos uma ideia? Por que não podemos nos falar? Por que você não pode me escutar? Ou eu te escutar?
Não ouviram os Seus passos, estava caminhando no jardim, pois discutiam a relação e viam a possibilidade de terem um filho no próximo verão. O que estais fazendo que não ouvistes meu chamado? Acaso virastes os ouvidos a alguma voz desconhecida? Agora compreendo essa antipatia e por que estou neste monólogo infernal. Ouvistes a voz daquele animal desgraçado, corruptor da minha criação e de minhas criaturas. Porque não escutastes minha poderosa voz, amaldiçoo vossas orelhas e que não haja compreensão entre vós. Ele lhe falará dos seus desejos mais profundos e tu o ignorarás, fingindo prestar atenção. Ela virá ao seu ouvido pedir-lhe mundos e mundos e tu dirás que daqui a pouco lhe dará. De tempos em tempos, tereis de limpar o interior de vossas orelhas, por causa da vossa desobediência.

Gabriel Sant’Ana

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