quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Ungues

I

O espírito do homem suporta a doença,
Mas quem erguerá um espírito abatido?
Provérbios 18, 14

Toda vez que virava as páginas dos livros, irritava-se com suas próprias unhas. Doentiamente, tentava não marcar as folhas. Era descaso, falta de educação aquelas marquinhas finas nos cantos das páginas. Além da sujeira, que, por mais que tentasse, acabava se encrostando.
Odiava, ao coçar a cabeça, as feridas que lhe faziam as unhas. Nunca cicatrizavam. Parecia não resolver, por mais que tomasse banho, lavasse com shampoo e condicionador, anticaspa, a coceira nunca parava. Não era só na cabeça, mas nos braços e nas pernas. Já fora ao médico, piolho não tinha ou qualquer doença de pele.
Olhava para as unhas dos pés, não o incomodavam. Mas as das mãos. Tinha parado até de apertar as mãos das pessoas, de acenar, de acariciar a esposa, de segurar seu filhinho. Era mais do que nojo.
Cortava as unhas compulsivamente, de três em três dias. Lavava as mãos sempre com detergentes, sabão em pó, sabonete, cloro, água benta. Não usava tesourinha de unha, mas aquele cortador vagabundo que se vende no trem a cinquenta centavos. Lixava as unhas. Esfregava-as com a esponja da cozinha. Estava perdendo as digitais e começava a ter problemas no trabalho, pois, com muita dificuldade, batia o ponto.

II

Tenham nos lábios o louvor de Deus,
E nas mãos a espada de dois gumes
Salmos 149, 6

No quarto, com as luzes apagadas, sete velas acesas, de frente para o espelho, nu, com as unhas grandes, sujas, arranhava-se por inteiro e sentia um misto de prazer e ódio com o sangue e a carne e os pelos entre as unhas, e o sangue escorrendo por todo o corpo. Não sentia dor, nem lágrima saía-lhe dos olhos. Estava consciente do que fazia. Sua mulher e o filho não chegariam nesse dia. Tinha escrito uma carta odiosa, marcada com as unhas. Deixou-a sobre a mesa da cozinha, toda arranhada num acesso de raiva.
O facão de cortar carne ao lado direito, limpo há duas semanas ritualisticamente pelas mãos dentro de luvas de couro. Pegou o potinho com as unhas guardadas há quinze anos, tomou aleatoriamente uma delas e fez com ela o sinal da cruz.
Com a mão direita, sem luvas, tomou do facão e extirpou a esquerda com um golpe só. Com os dentes, começou a morder ferozmente a direita, arrancando as carnes, principalmente os dedos. Após isso, mastigou os restos do que se chamavam mãos e dedos e os engoliu.
Passada meia hora do ritual, sentiu um forte ímpeto de acabar de vez com as unhas dos pés. Devorou cada dedo. Durou duas horas o ritual e o finalizou dando glórias ao Criador, cujas unhas e dedos não eram mencionados no Livro.

Gabriel Sant’Ana

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