quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Côncavos e convexos

Toda aquela sua irritação não adiantara para muita coisa. A mulher não deixou de sair para o cinema com as amigas para ficar em casa lhe fazendo companhia ou na cozinha lhe fazendo algum lanchinho para o final da partida do Campeonato Brasileiro, que passava na televisão.
Já estava há muito tempo querendo dar o grito de independência, ou de alforria. Estava apenas esperando uma oportunidade melhor.
Há cinco anos de casados mais sete de namoro que vivia subordinada a seu querer, a suas vontades mais mesquinhas e risíveis; há anos não experimentava o simples ato de respirar o ar e o de olhar as toscas plantas que ele tinha plantado no jardim. Sua vida patética tinha se restringido à tríade cama-mesa-e-banho.
Tudo culpa de sua falta de vigilância e de rigor. Como não tinha percebido que já não era mais a mesma? Que já não obedecia do jeito de antes? Era necessário fazer alguma coisa. Talvez estivesse saindo com alguém do curso. Vagabunda. Safada.
Comprou-lhe um celular e mandou que, de dez em dez minutos, ligasse para ele, avisando o que estava acontecendo. Obrigou que ela lhe desse as senhas dos e-mails. Estava apenas cumprindo com os deveres de marido e protegendo-a de possíveis perigos.
O sufoco da tríade de que se livrara tinha voltado. Sentiu que as mãos dele agarravam e pressionavam todo seu corpo, seu pescoço, suas pernas, seus braços, seus pensamentos, inclusive. Com quem você conversou hoje? Alguém deu em cima de você? Algum homem te tocou? Não vi você sair de casa, com que roupa você está vestida? Está de batom vermelho... o que lhe disse sobre isso?! Foi de saia?!
Conseguiu sair de casa, enquanto ele estava dormindo, sem fazer barulho algum. Colocou sua melhor calça jeans, uma bota de couro, uma blusinha justa de seda, a jaqueta preta. Estava chuviscando. Tinha marcado com as amigas de estarem duas horas antes da sessão. Encontrariam-se em frente ao McDonald’s.
Chegou. Compraram casquinhas de baunilha. Foram conversando em direção ao cinema.
Como você está bonita! O que houve com você? Por que esse rosto assim? Por que não fala nada? Como pôde se esquecer? Poderia ter esquecido sua identidade, CPF, tudo. Menos o celular! Que ficou em cima da mesa da cozinha. Como isso foi acontecer? Onde estava com a cabeça? Por que não nos responde? Se pegasse um táxi, talvez conseguisse pegar o celular e ele ainda estivesse dormindo... Vagabunda. Esqueceu de propósito o celular. Está com algum homem...
Viu o recado que ela tinha deixado no braço do sofá. Estou indo ao cinema com a Karla e a Fabíola. O filme é das 14h. às 16h. Estarei em casa às 17:45h. Te amo! Idiota, ainda começou a frase com um pronome oblíquo... Ela que volte para pegar o celular, não vou ao shopping ensinar a ela como deve se comportar.
Não pegou o táxi. Não voltou para casa nesse dia. Ele pegou o celular e foi ao shopping. Não a encontrou lá. Ficou nervoso, preocupado. Onde ela estaria? Ai de mim quando ela chegar... Por que fui pegar no sono? Por que não aceitei vir com ela? Poderia ver a reprise do jogo mais tarde... Até que o filme não seria tão ruim assim... Puxa vida... Como vou fazer para achá-la?
Voltou para casa com um enorme peso na consciência. Ela com certeza iria fazer um escândalo. E ele não teria nenhuma justificativa para dar. Estava errado. Está certo que muitas vezes ela aumentasse o que ele fazia de errado; mas ela está correta em cobrar dele, em exigir.
Todo mês, ela obrigava que ele lhe desse mil reais para comprar roupas, fazer lanches, distrair a cabeça. Não quis se casar com ela? Ele que fizesse suas vontades. Era esse o contrato. Se não fizesse o que ela mandava, cuspia-lhe o rosto, xingava palavrões e houve até água fervendo no rosto. Já foi até queimado a ferro. Ele pedia perdão, ajoelhava-se, beijava seus pés, implorava sua amor. Que amor? Ele não quis arrancá-la da casa da mãe? Arcasse com as despesas e obrigações. Ele devia sim fazer a janta, devia sim lavar as roupas. Ela já estava cansada, já tinha feito muito na casa da mãe. Agora ele que a servisse.
Exigiu que ele ligasse para ela e lhe desse os mínimos detalhes do seu dia de trabalho. Que o celular nunca ficasse descarregado. Ele só deveria sair com amigos, nunca amigas. Homem não tem amizade com mulher, tem é interesse, vontade de ir para cama com ela. Ou acha que ela era idiota? Quer assistir ao jogo de futebol, que assista! Não deixaria de ir ao cinema com as amigas, que não se chamam Karla nem Fabíola, mas Carlos e Fábio. Sim. Homens. Iria sair novamente no próximo sábado. Já estava cansada de ver o mesmo filme com ele, sempre as mesmas cenas, as mesmas falas. Ela precisa de outra história, ou de todas ao mesmo tempo.

Gabriel Sant’Ana (2011)

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