sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O vento das cinco

Sempre gostei de beber água quente. Mesmo sabendo que água não tem gosto, pra mim tem gosto sim. Água quente tem gosto. Não gosto de água gelada porque é artificial. Ela perde a mais preciosa característica de uma água verdadeira. Sua natureza de terra, de chão, de vida, de calor do sol. Água gelada escamoteia tudo o que tem de mais puro e natural. Bebo água quente, tomo banho com água fria.
Pode parecer esquisito. Não ligo o chuveiro no quente. Isso também é escamotear as coisas. Quando alguém vai pra praia, aperta o botão pra água ficar quente? E na cachoeira? Não tem como. Primeiro se coloca o pé na água, depois as mãos e os braços, sente aquele arrepio gostoso, por causa da temperatura da água, mas depois se joga naquele mar. Assim é em casa. Tudo na maior naturalidade. Nada de frescuras.
Bolo. Adoro bolo. Não aqueles com glacês, ou cheios de recheios, coberturas, de muitos sabores. Prefiro o bolo mais tradicional. Aquele que leva essência de baunilha, que se come à tarde, com um cafezinho e uns pães franceses da padaria da esquina.
Mas, ainda assim, nada se compara ao maravilhoso vento de fim de tarde. Todos os dias, por volta das cinco da tarde, sento na minha cadeira e espero por ele. Fico a observar os pássaros no céu, as árvores do meu quintal, a minha casa, os vizinhos que chegam do trabalho cansativo.
Muito já perdi nesse meu caminhar. Mas perder o vento das cinco não posso. Já perdi minha caneta azul dentro da minha casa, nunca mais achei, não sei se está no meu quarto, ou na sala. Desisti de procurar. Já perdi a minha xícara preferida. Não me lembro se deixei cair da mesa ou se a emprestei. Perdi minha mulher, meus filhos, minha família. A única lembrança que tenho deles está em um álbum velho e empoeirado que, todas as manhãs quando acordo, abro, viro suas páginas e relembro aqueles momentos que se foram.
Sei que hoje, depois de sentir o vento das cinco tocar meu rosto, minhas mãos, meus pés descalços, serei um com ele.


Gabriel Sant’Ana

Um comentário:

  1. Descobri que as coisas que perdemos dentro de casa vão parar na Austrália. Não sei exatamente como funciona, mas tem relação com um "portal doméstico intermitente".

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