domingo, 12 de fevereiro de 2012

Cinquenta centavos

Quando entrou em casa, vazia, subitamente sua coleção de moedas de cinquenta centavos, que estava dentro de um recipiente de vidro no meio da mesa da sala, desabou no chão. O que se poderia chamar de baú de vidro das moedas se quebrou. Eram milhares de moedas. Tomou um enorme susto com o acontecimento.
Porém o barulho das centenas de milhares de moedas de cinquenta centavos superou o susto.
Vibrava o caos nos ouvidos.
Dentro de si uma paranóia louca, prazerosa, irritante. Era mais do que música eletrônica, mais que o som de dentro de uma concha, mais do que uma mulher reclamando, mais que várias crianças chorando porque os pais não compraram o brinquedo tão desejado.
Era algo que há tempos não sentia, não escutava. Algo que deixava tonto.
Não tinha provocado aquela sinfonia anormal. Sequer a tinha desejado.
Seus pés não conseguiram levar o resto de si à sala para interromper a queda do império de prata, para guardá-lo em sua fortaleza de vidro, que se tinha espatifado.
Os olhos não piscavam, hipnotizados pelo brilho prateado que se refletia com os raios de sol de fim de tarde, que entrava pela janela sem cortina.
Uma das mãos deixou cair a pasta, espalhando os papéis. Seus dedos não conseguiam se mexer. Sentia a pulsação do sangue nas veias, o batimento cardíaco, a respiração intensa e eufórica, algumas gotas de suor escorrendo pelo rosto, pescoço, axilas.
Criança, brincava com os amiguinhos de girar as moedas, e a que ficasse por mais tempo rodando, venceria. Antes de fazerem girar as moedinhas, jogavam para cima e se divertiam com sua queda, com aquele som. Som de moeda.
Muitas vezes, dentro do ônibus, o trocador, dando o troco a um passageiro, deixava a moeda cair, não por descuido, mas pelo movimento rápido do ônibus. Era gostoso ouvir aquele troco caindo no chão do transporte.
Decidiu fazer coleção de moedas de cinquenta centavos em um dia quando, passando por uma calçada, encontrou uma moeda desse valor. Sempre o atraíra essa moeda, seu peso, seu formato. Não era fina como uma moeda de um real, de dez centavos, ou de cinco. A de vinte e cinco não fazia o seu tipo. Sua cor não lhe agradava. Nem o desenho do número.
Além disso, o número cinquenta era belo, encantador. Sempre que jogava na loteria, tentava, entre outros números, o cinquenta.
Mais de dez anos, juntou, ininterruptamente, moedas de cinquenta centavos. Caso não conseguisse uma delas em algum troco, trocava moedas de cinco, dez e vinte centavos em mercados, jornaleiros ou bancos pelas de cinquenta. Fez trocar, inclusive, vinte reais em moedas de cinquenta centavos, dia desses.
Colocara em mente essa ideia de juntar o máximo de moedas e, depois, jogar todas elas para cima, a fim de obter o máximo prazer de sentir a vibração da queda das moedas, de ouvir aquele eco nos ouvidos. Em criança, em adolescente, antes desse acontecimento estranho, nunca havia conseguido sentir de fato o que era uma moeda cair. Sentira, sim, alguns gozos rápidos e fugazes. Não buscava prazeres momentâneos. Buscava o prazer. Não qualquer prazer. Mas o prazer de sentir por completo a queda de milhares e milhares de moedas. Pois com o máximo delas, o tempo em que permaneceriam fazendo barulho e girariam e se colidiriam seria maior.
Assim como uma mísera e esquecida moeda de cinquenta centavos fora por ele encontrada, ou ela o encontrara, por acaso, sem intenção, sem motivos e razões; assim foi que aconteceu o que mais tinha desejado instintivamente desde os cinco anos de idade e tinha colocado em mente aos vinte e cinco.
Ali, naquela sala, estático, hipnotizado, sentindo intensamente em seu corpo e mente. Acabaram as ideias, as sensações falsas. Fica ele também a rodar, a cair. Acaba a vida. Torna-se moeda.

Gabriel Sant’Ana

2 comentários:

  1. Interessante como esse seu texto me fez voltar no tempo, ao meu Ensino médio. Enquanto lia, só conseguia pensar - e até visualizar- um dia em que, após sair da escola, a caminho da casa de uma amiga, carregando meu fichário nos braços- pesado de tantas folhas - me atrapalhei por causa de uma pessoa que passava do outro lado da rua e que me fez ficar nervosa, e deixei algumas folhas soltas cairem ao chão. Tudo isso é muito normal, quem nunca deixou folhas cairem no chão? O que h´ade novo nisso é que, para não parecer que estava atrapalhada - ou sei lá o verdadeiro motivo- eu resolvi jogar todo o resto das folhas no chão. Simplesmente, virei o fichário e as deixei cair, enquanto eu ria da situação como se fosse algo estremamente engraçado. Mas mesmo não seno, naquele momento foi. Enquanto recolhiamos as folhas, minha amiga e eu riamos como doidas, nos divertindo com algo tão bobo, mas estranhamente tão gostoso.

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  2. mas por que seus pesonagem quase sempre acabam mortos?

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