sábado, 14 de abril de 2012

(À busca de um título)

Suas mãos procuravam compulsivas algo dentro da bolsa, seus olhos arregalados, sem piscar, guiavam-nas pelo pequeno espaço entupido de coisas acumuladas, contas de supermercados, notas fiscais, papéis de bala, pente, carteira, batom, bloquinho de anotações, e empurrava para a esquerda tudo aquilo, nada, nada, onde estaria, papeizinhos amassados, amarelados, há mais de cinco anos ali dentro, absorventes, um rolo de papel higiênico para aquelas horas de aperto na rua, um desenho do filho, rabiscos feiosos, tortos, de uma cor só, como pudera dizer que estava lindo, algumas gotas de suor de sua testa pingavam, manchavam o belo desenho do filho, que tinha sido picotado em pedaços e jogado na calçada.
Agora, com mais raiva, levava todo aquele material de uma vida apressada para o canto direito, talvez não estivesse naquele outro canto, todo seu corpo banhava-se intensamente com o suor que escorria por cada região do corpo, suas mãos já estavam mais rijas, suas veias saltavam, sentia-se levemente tonta, ainda nada, não se sentaria no chão para procurar, teria de ser ali mesmo, de pé, que se danassem os outros, que se desviassem, não pararia de buscar, acharia, não tirara daquela bolsa, era certo, no dia anterior retirara tudo da outra bolsa e pusera nesta, o celular vibrava ao fundo, não atenderia, que morresse o mundo, deixara o filho na creche, que tomassem conta dele, remexia com mais impaciência todos os cantos da bolsa, seus dedos nervosos olhavam cada mínimo buraco da maldita, uma linha se agarrou ao relógio de pulso piorando o estado, bruscamente soltou-se dela, mas o pequeno dano fez aumentar ainda mais o volume de coisas inúteis dentro, dali jorraram uma infinidade de bilhetinhos, eram da época em que ainda era casada e se encontrava com um colega de trabalho, que lhe escrevia pequenos poemas eróticos copiados de algum poeta que desconhecia, mas adorava aqueles versos, escondia-os na bolsa, o marido certo dia achou um, fora horrível, desde aquele dia costurava o que ganhasse na bolsa, remexe e remexe, o sol quente não mais incomoda seu corpo que parece já fazer parte daquilo, suava animalescamente, sua virilha ardia, suas pernas tremiam a cada volta que fazia dentro da bolsa.
Não percebia que o dia caía, não percebia nada a sua volta, não mais usava as mãos, agora colocava o rosto dentro, com a boca removia o que tinha pelo caminho, suas costas envergavam-se num movimento de árvore nova recebendo uma ventania em seu tronco, suas pernas não mais tremiam, seus pés não sentiam o chão, seus olhos vidraram-se, com o nariz buscava o que nem mais se lembrava, mas buscava mesmo assim, iria achar, mostraria que tinha sim, mais tarde em casa colocaria os pés numa bacia de água morna, depois deixaria as pernas levantadas para fazer o sangue correr, encontraria, os papéis de mais de cinco meses feriam seu rosto, uma agulha emprestada pela vizinha furou seu olho esquerdo, mesmo assim continuava de olhos abertos, mesmo assim rodava em busca, a poeira do fundo entrava nas suas narinas, entupindo, o fecho arranhava seu pescoço, não suava, a tontura já tinha tomado conta de si, permanecia de pé, seus joelhos inexistiam, os ouvidos estavam atentos a qualquer movimento suspeito dentro dela, o celular voltava a tocar, não conseguiu distinguir o número, era a secretária da creche ligando para perguntar se alguém viria buscar o menino, que estava em prantos, com medo de ter acontecido algo de ruim à mãe, já tinha vomitado mais de duas vezes, em prantos, ninguém buscaria o garoto, o telefone de casa tocou mais de vinte vezes, moravam só eles dois, engoliu muitas coisas para diminuir a obstrução e a fome, farelos de biscoitos, pães, papéis de bala, chiclete, uma receita de bolo de fubá.
As horas entravam noite adentro, passantes olhavam a cena assustados, mulheres passavam às pressas para seus filhos não ficarem com traumas ao verem aquela loucura, seu penteado já se tinha desfeito, fios de cabelo foram arrancados pelos movimentos ignorantes, a maquiagem se tinha borrado pelo suor, pelo sangue, pela sujeira, adquiria a cor da bolsa até o pescoço, se arrepiava pelo frio, não passava nada pela cabeça senão a ideia de encontrar, encontrar, encontrar, encontrar, encontrar, encontraria, encontraria, e metia ainda mais sua cara, enfiava, encontraria sim, enfiava-se ainda mais, metia-se, iria achar sim, um pequeno estalo no pescoço, selvagemente comia o que estava à frente da boca, que sangrava intensamente, mastigara a agulha, a lixa de unha, engolia o sangue, um riso se formou nos lábios, gargalhava ali dentro, suas narinas se entupiram por completo, pensava ainda ter os ouvidos, sua sombra sem perceber vai diminuindo.
No dia seguinte apenas uma bolsa na calçada.

Gabriel Sant’Ana

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